São Paulo, quarta-feira, 05 de abril de 2006

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MARCELO COELHO

A estranha sina dos vices

Espero que não me entendam mal, mas tenho um fraco por Cláudio Lembo. É dos tais políticos que estão sempre em todos os lugares, mas que sempre parecem estar em lugar nenhum. Rara vocação de vice profissional, ele é discreto a ponto de atingir a inexistência.
Como não reparar, entretanto, na sua figura de pássaro exótico, ornado das mais extravagantes sobrancelhas de que se tem notícia na história republicana? Houve outras, é claro. Mas em Roberto Gusmão ou Renato Archer as sobrancelhas se enquadravam numa fisionomia sólida, possante, voluntariosa, muito diversa do ar vago e oval de Cláudio Lembo.
Vejo-o na Primeira Página da Folha, tomando posse no governo de São Paulo. Terno e gravata pretos, expressão contida. Mesmo nesse momento, ele não está em primeiro plano: dois clarinetistas em uniforme de gala, plumas vermelhas no casquete, conferem à fotografia não sei que ar de brinquedo, de conto de fadas, de desfile de opereta.
Ou de cortejo fúnebre. Queira ou não, todo vice combina em sua intimidade os desejos de morte e de poder. E, por isso, especulo, no rosto de Lembo se combinam a palidez e o hirsutismo, a contenção monástica e a expansão pilosa.
Entrevistado pela Folha, Lembo declarou que o cargo de vice, por seu estado de constante expectativa, exige "nervos de aço". Talvez, se o primeiro mandatário sofresse do coração ou de alguma outra doença grave. Como não é este o caso de Alckmin, o significado desses "nervos de aço" corresponde, creio, a uma virtuosa resistência à tentação de aparecer, a um esforço de modéstia, obediência e disciplina.
Lembro-me de um debate transmitido pela rede Bandeirantes em 1978, quando Lembo e Fernando Henrique Cardoso eram candidatos ao Senado. Lembo sustentava civilizadamente o regime militar, coisa impossível de ser feita. Fernando Henrique estalava de auto-suficiência sociológica.
Lembo resolveu citar o cientista político Samuel Huntington, hoje famoso pela teoria do "Choque das Civilizações". Já nessa época, Huntington era um teórico dos mais contestáveis: via nos governos autoritários da América Latina um fator de modernização. Fernando Henrique descartou num safanão verbal a aventura teórica de Cláudio Lembo.
"Huntington justifica a ditadura", disse Fernando Henrique. Sempre disposto a assentir, Lembo esboçou uma resposta. "Justifica, mas..." Foi interrompido pelo príncipe dos sociólogos. Cito sem exatidão, mas foi algo assim. "Pode parar, porque desse assunto eu entendo mais do que você." Lembo recolheu-se à sua insignificância. Eleitor de Fernando Henrique na época, fiquei entre o embaraço e o alívio; mas, sem dúvida, naquele momento, era Fernando Henrique o representante do autoritarismo no debate.
Ex-secretário de Jânio Quadros, ex-presidente da Arena, Lembo agora assume o lugar do tucano Geraldo Alckmin. Afirma-se conservador. Casou virgem e critica no comportamento do ex-ministro Palocci antes a "devassidão de costumes" do que o contato com lobistas.
Acredita em milagres e assim qualifica -no que não está de todo errado- a simultânea ascensão de seu partido à prefeitura e ao governo de São Paulo.
Passou o tempo, com efeito, em que se imaginava uma convergência entre petistas e tucanos. O PFL de Lembo não difere do PSDB de Alckmin; a prática encarregou-se de limar as arestas que existiam entre o mundo de Antônio Carlos Magalhães e o de Mário Covas, enquanto o PT assume, pelo deboche, pelo abuso e pela truculência, o papel da antiga Arena.
Ao que tudo indica, há muito espaço para o PFL crescer em São Paulo. Assumindo, nestes últimos tempos, a bandeira do moralismo público e atendendo à dureza de direita que sempre foi marca registrada dos paulistas, o PFL não tem por que não ocupar o vácuo deixado por Maluf. Nacionaliza, por assim dizer, o bairrismo bandeirante, agora que possui -milagre de São Luis Inácio- "princípios éticos" para agitar.
Em tese, o conservador seria, entretanto, diferente do puro neoliberal. Este acredita em abstrações -números, planilhas, idéias. O conservador acredita em coisas concretas -tradições, paramentos, uniformes, monarcas.
Uma coisa intrigante na entrevista de Lembo: disse que não tem nenhum porta-retrato. "Os retratos são o passado. Guarde o passado na sua alma e não o exiba."
Avesso a fotografias durante muito tempo, simpatizei também com essa declaração. Sempre achei ruim levar a máquina em viagens de turismo. O que a memória não guarda não merece ser preservado, ao menos para mim.
Será este o caso de Lembo? O passado arenista não é motivo de orgulho para ninguém, e um vice, como sugeri acima, pensa mais nos cadáveres do futuro do que nos do passado.
Imagino outro motivo, entretanto, para seu desinteresse pelas fotografias. É que ele cultua a invisibilidade. Em sua campanha presidencial, Geraldo Alckmin terá de fazer força para fugir do mesmo estilo: vice de Covas (haja morbidez nessa lembrança), a morte o acompanha também.
Eis que nosso picolé de chuchu adquire dimensões metafísicas. Sabemos, entretanto, a que ponto leva o vitalismo popular de Lula. A racionalidade suicida e delinqüencial de José Dirceu e Antonio Palocci deixou-o "sozinho", como ele diz. A irracionalidade populista -para usar as palavras de Lembo- é mais adequada a seu perfil.
Entre a morte e a corrupção, a falta de compostura e a rigidez, mesmo porque seus papéis se alternam, este cronista se exime de escolher. A vida -mas que sabemos dela?- há de estar em outro lugar.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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