|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARCELO COELHO
A estranha sina dos vices
Espero que não me entendam mal, mas tenho um fraco por Cláudio Lembo. É dos tais
políticos que estão sempre em todos os lugares, mas que sempre
parecem estar em lugar nenhum.
Rara vocação de vice profissional,
ele é discreto a ponto de atingir a
inexistência.
Como não reparar, entretanto,
na sua figura de pássaro exótico,
ornado das mais extravagantes
sobrancelhas de que se tem notícia
na história republicana? Houve
outras, é claro. Mas em Roberto
Gusmão ou Renato Archer as sobrancelhas se enquadravam numa fisionomia sólida, possante,
voluntariosa, muito diversa do ar
vago e oval de Cláudio Lembo.
Vejo-o na Primeira Página da
Folha, tomando posse no governo
de São Paulo. Terno e gravata pretos, expressão contida. Mesmo
nesse momento, ele não está em
primeiro plano: dois clarinetistas
em uniforme de gala, plumas vermelhas no casquete, conferem à
fotografia não sei que ar de brinquedo, de conto de fadas, de desfile de opereta.
Ou de cortejo fúnebre. Queira ou
não, todo vice combina em sua intimidade os desejos de morte e de
poder. E, por isso, especulo, no rosto de Lembo se combinam a palidez e o hirsutismo, a contenção
monástica e a expansão pilosa.
Entrevistado pela Folha, Lembo
declarou que o cargo de vice, por
seu estado de constante expectativa, exige "nervos de aço". Talvez,
se o primeiro mandatário sofresse
do coração ou de alguma outra
doença grave. Como não é este o
caso de Alckmin, o significado
desses "nervos de aço" corresponde, creio, a uma virtuosa resistência à tentação de aparecer, a um
esforço de modéstia, obediência e
disciplina.
Lembro-me de um debate transmitido pela rede Bandeirantes em
1978, quando Lembo e Fernando
Henrique Cardoso eram candidatos ao Senado. Lembo sustentava
civilizadamente o regime militar,
coisa impossível de ser feita. Fernando Henrique estalava de auto-suficiência sociológica.
Lembo resolveu citar o cientista
político Samuel Huntington, hoje
famoso pela teoria do "Choque
das Civilizações". Já nessa época,
Huntington era um teórico dos
mais contestáveis: via nos governos autoritários da América Latina um fator de modernização.
Fernando Henrique descartou
num safanão verbal a aventura
teórica de Cláudio Lembo.
"Huntington justifica a ditadura", disse Fernando Henrique.
Sempre disposto a assentir, Lembo
esboçou uma resposta. "Justifica,
mas..." Foi interrompido pelo
príncipe dos sociólogos. Cito sem
exatidão, mas foi algo assim. "Pode parar, porque desse assunto eu
entendo mais do que você." Lembo recolheu-se à sua insignificância. Eleitor de Fernando Henrique
na época, fiquei entre o embaraço
e o alívio; mas, sem dúvida, naquele momento, era Fernando
Henrique o representante do autoritarismo no debate.
Ex-secretário de Jânio Quadros,
ex-presidente da Arena, Lembo
agora assume o lugar do tucano
Geraldo Alckmin. Afirma-se conservador. Casou virgem e critica
no comportamento do ex-ministro Palocci antes a "devassidão de
costumes" do que o contato com
lobistas.
Acredita em milagres e assim
qualifica -no que não está de todo errado- a simultânea ascensão de seu partido à prefeitura e
ao governo de São Paulo.
Passou o tempo, com efeito, em
que se imaginava uma convergência entre petistas e tucanos. O PFL
de Lembo não difere do PSDB de
Alckmin; a prática encarregou-se
de limar as arestas que existiam
entre o mundo de Antônio Carlos
Magalhães e o de Mário Covas,
enquanto o PT assume, pelo deboche, pelo abuso e pela truculência,
o papel da antiga Arena.
Ao que tudo indica, há muito espaço para o PFL crescer em São
Paulo. Assumindo, nestes últimos
tempos, a bandeira do moralismo
público e atendendo à dureza de
direita que sempre foi marca registrada dos paulistas, o PFL não
tem por que não ocupar o vácuo
deixado por Maluf. Nacionaliza,
por assim dizer, o bairrismo bandeirante, agora que possui -milagre de São Luis Inácio- "princípios éticos" para agitar.
Em tese, o conservador seria, entretanto, diferente do puro neoliberal. Este acredita em abstrações
-números, planilhas, idéias. O
conservador acredita em coisas
concretas -tradições, paramentos, uniformes, monarcas.
Uma coisa intrigante na entrevista de Lembo: disse que não tem
nenhum porta-retrato. "Os retratos são o passado. Guarde o passado na sua alma e não o exiba."
Avesso a fotografias durante
muito tempo, simpatizei também
com essa declaração. Sempre
achei ruim levar a máquina em
viagens de turismo. O que a memória não guarda não merece ser
preservado, ao menos para mim.
Será este o caso de Lembo? O
passado arenista não é motivo de
orgulho para ninguém, e um vice,
como sugeri acima, pensa mais
nos cadáveres do futuro do que
nos do passado.
Imagino outro motivo, entretanto, para seu desinteresse pelas
fotografias. É que ele cultua a invisibilidade. Em sua campanha
presidencial, Geraldo Alckmin terá de fazer força para fugir do
mesmo estilo: vice de Covas (haja
morbidez nessa lembrança), a
morte o acompanha também.
Eis que nosso picolé de chuchu
adquire dimensões metafísicas.
Sabemos, entretanto, a que ponto
leva o vitalismo popular de Lula.
A racionalidade suicida e delinqüencial de José Dirceu e Antonio
Palocci deixou-o "sozinho", como
ele diz. A irracionalidade populista -para usar as palavras de
Lembo- é mais adequada a seu
perfil.
Entre a morte e a corrupção, a
falta de compostura e a rigidez,
mesmo porque seus papéis se alternam, este cronista se exime de
escolher. A vida -mas que sabemos dela?- há de estar em outro
lugar.
@ - coelhofsp@uol.com.br
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Panorâmica - Música 1: Echo & the Bunnymen toca em SP e no Rio Índice
|