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CONTARDO CALLIGARIS
Pequenos furtos, manchas e alívio
Pessoas respeitadas,
como Sobel, cometem,
irresistivelmente, atos
contra a sua imagem
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EM PSIQUIATRIA , a cleptomania
(impulso de roubar) é um dos
"transtornos do controle dos
impulsos", junto com o jogo de azar
descontrolado, a piromania (impulso incendiário), a tricotilomania
(impulso de se arrancar cabelos) e as
explosões repentinas de violência
contra os outros ou os objetos.
Caraterísticas comuns desses
transtornos: 1) o impulso surge de
maneira irresistível e sem premeditação (se coloco fogo na minha granja para receber o prêmio do seguro,
não sou pirômano, apenas malandro); 2) o ato, precedido por uma
forte tensão, produz no sujeito uma
sensação de alívio.
Nota: é importante não confundir
os transtornos do controle dos impulsos com condutas similares que
aparecem nas crises de mania -as
quais, por sua vez, são caracterizadas assim: três ou quatro dias sem
sono, idéias (delirantes ou quase) de
grandiosidade e onipotência, fuga
do pensamento, agitação psicomotora.
Desde que chegou a notícia da prisão do rabino Henry Sobel pelo furto de quatro gravatas em lojas luxuosas de Palm Beach (EUA), recebo e-mails que propõem apoio moral ao rabino e outros que parecem
antever e contestar antecipadamente esta coluna, lembrando (não sem
humor): "Cuidado: pobre que rouba
é ladrão, rico é cleptômano".
Que os autores desse segundo grupo de e-mails se tranqüilizem: nos
tribunais americanos, a cleptomania não ameniza a responsabilidade
do acusado.
Agora, é verdade que, em regra, o
cleptômano, rico ou não, rouba objetos que não lhe são indispensáveis
e que ele poderia comprar sem grande esforço financeiro.
Mas vamos ao que importa. A categoria psiquiátrica de "transtornos
do controle dos impulsos" é descritiva e não diz nada sobre os caminhos
que tornam um sujeito cleptômano,
pirômano, jogador compulsivo etc.
Esses caminhos são singulares.
Exemplo extremo dessa singularidade: conheci um transexual operado (homem para mulher) que, a cada dia, roubava nas lojas de Paris e
sempre voltava para recolocar (também às escondidas) o objeto roubado na prateleira.
Provavelmente, era guiado pela
vontade de fazer desaparecer e
reaparecer objetos que representavam a parte de seu corpo à qual tinha
renunciado.
Não tenho idéia das razões singulares que levaram o rabino Sobel a
roubar naquelas lojas de Palm
Beach. Assim como não sei o que levou Winona Ryder a roubar roupas
na Saks de Berverly Hills; ou Ronaldo Esper, o estilista das noivas, a
roubar vasos de concretos num cemitério paulistano.
Mas essas três histórias (e várias
outras) têm algo em comum: os protagonistas são pessoas públicas; de
maneira e por razões diferentes, eles
são (ou foram) objeto de algum tipo
de idealização. Não só eles não precisavam roubar (pois os objetos furtados estavam ao alcance de seu bolso), mas, sobretudo, se fossem descobertos, o dano sofrido por sua figura pública seria incomparavelmente superior ao valor dos objetos
roubados.
Acontece com uma certa freqüência: pessoas respeitadas e admiradas
cometem, irresistivelmente, atos
que mancham sua imagem. Elas ganham assim, no noticiário, um espaço que é o inverso àquele que elas
ocupavam: caem, diretamente, da
idealização ao escárnio.
Poderíamos inventar uma nova
categoria, a dos "transtornos do controle dos impulsos em notáveis de
uma comunidade". Seu traço saliente seria a desproporção entre o tamanho da infração (geralmente pequena) e o risco de comprometer
uma reputação que é, no fundo, o
maior patrimônio do sujeito.
Uma explicação possível para essas condutas está justamente na
desproporção.
Imagine conviver com a sensação
de um divórcio permanente (que é,
de qualquer forma, inevitável) entre
a visão idealizada que os outros têm
de você e a visão, bem menos lisonjeira, que você tem de sua pessoa.
Imagine a tensão incessante para estar à altura de uma imagem pública
da qual você só pode, honestamente,
sentir-se indigno: a visibilidade, o
respeito e a admiração dos outros se
tornam um fardo insustentável.
Quando um homem respeitado e
respeitável comete um ato incompreensível que prejudica o capital de
estima que ele acumulou, talvez seja
justamente para desmentir sua figura pública idealizada, ou seja, para
abrandar, enfim, o sentimento de viver uma extenuante impostura.
O ato, nesses casos, é um alívio,
um grito que diz: "Sou um homem
qualquer".
ccalligari@uol.com.br
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