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ANTONIO CICERO
Astúcia do Diabo
A racionalidade por trás da crença no demo é uma falácia que ecoa em Freud e Heidegger
NUM POEMA em prosa, Baudelaire põe em cena um pregador segundo o qual a mais
admirável astúcia do Diabo é nos
persuadir de que não existe. Não é
difícil entender por que, se o capeta
existir, terá interesse em nos fazer
crer o contrário.
Em primeiro lugar, ele saberá que
quem acredita que ele existe tende a
acreditar que também Deus existe
(o poeta João Cabral foi a exceção
que confirma a regra), coisa que não
lhe interessa. Além disso, provavelmente lhe parecerá mais fácil induzir à tentação as pessoas que sequer
acreditam que ele exista do que as
que o temem.
De todo modo, para uma pessoa
que crê que o demo não só existe como que pretende, sob algum disfarce ou através de algum mandatário,
persuadir-nos de que não existe,
exatamente a persuasividade e a racionalidade de seus argumentos
atestarão a sua origem diabólica. E
tal pessoa pensará a mesma coisa sobre qualquer consideração que ponha em questão a existência de
Deus. Sendo assim, argumento nenhum jamais poderá fazê-la duvidar
dessas crenças. Com efeito, a astúcia
de satanás é postulada exatamente
para blindá-las contra o assalto de
qualquer crítica.
Naturalmente aquilo que, do ponto de vista do crente, é força, do ponto de vista da razão é fraqueza. Para
esta, tudo o que se imuniza à crítica,
tudo o que se furta à prova é irracional. Racionais são a própria crítica, a
abertura à crítica e tudo aquilo que,
enfrentando a crítica -ainda que
diabólica-, a ela sobreviva. Já o irracionalismo é -como a própria falácia da astúcia do Diabo- a tentativa
de desqualificar o racional.
Observe-se que, se a tese -ou melhor, se a falácia- da astúcia do Diabo caracteriza o arquiinimigo de
Deus como aquele que argumenta e
critica, isto é, como aquele que é racional, ela explicitamente caracteriza os crentes e, implicitamente, o
próprio Deus, como irracionalistas.
Na verdade, embora há tempos não
seja essa a doutrina dominante da
Igreja Católica, trata-se de uma tese
perfeitamente compatível com algumas das concepções mais vetustas do Cristianismo. O apóstolo Paulo, por exemplo, regozija-se de que,
segundo o profeta Isaías, Deus mesmo tenha afirmado: "Destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei a inteligência dos inteligentes".
Ora, que a doutrina de uma religião possa ser irracionalista ou conter fortes elementos irracionalistas
não é surpreendente, já que ninguém é religioso graças a considerações racionais, mas por outros motivos, como o desejo de comunidade.
Mais surpreendente é observar
que diferentes variantes da falácia
da astúcia do Diabo, adaptadas para
os mais diferentes fins, tenham sido
adotadas por pensadores laicos e
modernos.
Em psicanálise, por exemplo, a denegação é a astúcia através da qual o
analisando (análogo ao Diabo) nega
a interpretação do analista (análogo
ao crente). Ao fazê-lo, porém, ele inconscientemente a confirma, segundo o analista. O próprio Freud
-tendo reconhecido que, desse modo, garante-se sempre o triunfo do
analista, pois, quando o paciente o
aprova, lhe dá razão, mas, quando o
contradiz, trata-se apenas de um sinal de resistência, o que de novo lhe
dá razão- explica que essa questão
só se resolve na prática, no contexto
concreto da análise.
Um exemplo mais grave é a tese de
Heidegger de que o mundo moderno já se encontra tão destituído que
não consegue mais sequer perceber
a falta de Deus como uma falta. Assim, do mesmo modo que o crente
supõe que aquele que negue a existência do Diabo ou de Deus inconscientemente a afirma, Heidegger supõe que aquele que negue sentir falta de Deus com isso dá, também inconscientemente, ainda maior evidência da falta que Ele faz do que
aquele que abertamente reconheça
sentir falta d'Ele.
Muitos outros exemplos poderiam ser dados, mas considero especialmente interessante -por poder
ser estendida a grande parte do pensamento marxista sobre ideologia-
a afirmação de Adorno de que a aparente liberdade em vigor no mundo
moderno torna mais difícil a percepção da servidão real em que se vive, a
qual, com isso, é agravada. Isso quer
dizer que aquele que, no mundo moderno, pretenda provar ser livre é
ainda mais escravizado do que quem
já se considere escravo. Pelo mesmo
raciocínio, quanto mais um pensamento tente provar que não é ideológico, tanto mais o será.
É assim que, há séculos, a falácia
da astúcia do Diabo tenta in limine
desqualificar qualquer objeção que
se pretenda fazer ao irracionalismo
a que ela no fundo serve.
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