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RÉPLICA
Estamos sujeitos à atividade inapreensível do presente
NOEMI JAFFE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Nas últimas semanas, Nelson Ascher, que escreve às
segundas-feiras na Ilustrada,
vem sistematicamente expondo
suas opiniões sobre a guerra EUA
x Iraque. Não me sinto preparada
para responder ponto a ponto os
comentários que vêm sendo feitos
a cada semana. Por mais que
acompanhe os noticiários, as informações são tão dúbias, avassaladoras e ao mesmo tempo superficiais, que eu prefiro não responder objetivamente, dado por dado, às afirmações. Por outro lado,
acho que posso dar uma resposta
de outra natureza.
Podemos considerar pragmatismo como o pensamento que
enfatiza a aplicação das idéias e as
consequências práticas de conceitos e conhecimentos; ou como
uma filosofia utilitarista, ou como
uma corrente de idéias que prega
que a validade de uma doutrina é
determinada pelo seu bom êxito
prático (todas definições extraídas do Houaiss). Ou ainda, pragmatismo como uma espécie de
"positivismo histórico".
Os fatos históricos -e esse é
outro conceito a ser discutido,
pois o que chamamos de fatos são
justamente os êxitos ou resultados históricos- valem pelo seu
efeito a longo prazo, e, é claro, o
efeito positivo, ou eficácia de um
fato, é sempre positivo para uma
das partes interessadas.
Ocorre que nós, habitantes
atuais do que se convencionou
chamar de história, não vivemos
no "longo prazo", no "efeito", ou
na "eficácia" -conceito que também já se verificou altamente relativo na história conhecida do passado.
Somos seres em inconstância
dinâmica, vivos, com interesses
moleculares, subjetivos e se, porventura, temos interesses de
maior amplitude social, ainda assim são sempre interesses mediados por condições dinâmicas e
em certa medida alheias ao controle absoluto -a não ser, é claro,
que se resolvam os interesses com
uma bomba entregue diretamente em casa "mais rápido do que
uma pizza". Vivemos na atualidade; sujeitos que, por mais interesse que tenham nos fins últimos
das ações humanas, vivem não os
fins, mas os meios. Não estamos
fora da história, avaliando seus
fins.
Nós, brasileiros, franceses, tailandeses, americanos soldados e
iraquianos civis e militares, estamos todos sujeitos à atividade
inapreensível do tempo presente.
Essa é nossa vida. Nosso privilégio, em relação aos futuros leitores da história, é conhecermos os
meios na sua integridade e pluralidade.
A definição mais plausível de
ética, para contrapor-se à definição inicial de pragmática, é a que
compõe o pensamento spinoziano, de encontros e paixões alegres
(não tristes) para que ocorra a experiência do bem-estar individual
e comunitário. Encontros alegres
são aqueles que expandem e não
escravizam as possibilidades de
expressão do corpo e correspondentes idéias na alma. Encontros
onde não há senhores nem servos. Encontros livres.
A ética spinoziana não acontece, nem pode acontecer, por sua
própria natureza, no futuro ou no
passado. Como ela trata dos
meios e não dos fins, ela só pode
acontecer no presente. Quem vive
o meio com sentido ético, já o obtém como fim: o bem-estar.
Viver no presente, ser mais uma
criatura do aparelho histórico,
mas localizar-se alienadamente
no futuro, pré-julgando os fins,
avaliando a positividade da guerra, assumindo visadas históricas
supostamente globais, estudando
os êxitos e as transformações e relevando os meios (só tantos mortos americanos, só tantos mortos
iraquianos), olhando imagens pela TV já com sua dimensão histórica (olhar jornalístico, "isso dá
notícia"), é o supra-sumo da arrogância e do alheamento. É negar-se como ser vivo, como indivíduo
subordinado ao tempo e sua dinâmica inagarrável. É negar-se à
ética e assumir, acreditando que
isso lhe confere algum poder, a
pragmática.
Vamos aos fins, pois eles são necessários! Chega de ingenuidade!
Ou seja, chega de vida, do tempo
presente! Vamos tornar-nos fatos. Afinal, os fatos são mais duradouros do que as pessoas. Pessoas
são joguetes dos fatos. Espertas
são as pessoas que, ao invés de
submeterem-se ao tempo, apressam-se em fazer parte do futuro.
Ao negarem-se a morrer, não sabem que já estão mortas, alienadas da única possibilidade de experimentação de alegria e bem-estar -o presente.
Noemi Jaffe é escritora e professora de
literatura, autora de "Folha Explica Macunaíma", entre outros
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