UOL


São Paulo, segunda-feira, 05 de maio de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RÉPLICA

Estamos sujeitos à atividade inapreensível do presente

NOEMI JAFFE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nas últimas semanas, Nelson Ascher, que escreve às segundas-feiras na Ilustrada, vem sistematicamente expondo suas opiniões sobre a guerra EUA x Iraque. Não me sinto preparada para responder ponto a ponto os comentários que vêm sendo feitos a cada semana. Por mais que acompanhe os noticiários, as informações são tão dúbias, avassaladoras e ao mesmo tempo superficiais, que eu prefiro não responder objetivamente, dado por dado, às afirmações. Por outro lado, acho que posso dar uma resposta de outra natureza.
Podemos considerar pragmatismo como o pensamento que enfatiza a aplicação das idéias e as consequências práticas de conceitos e conhecimentos; ou como uma filosofia utilitarista, ou como uma corrente de idéias que prega que a validade de uma doutrina é determinada pelo seu bom êxito prático (todas definições extraídas do Houaiss). Ou ainda, pragmatismo como uma espécie de "positivismo histórico".
Os fatos históricos -e esse é outro conceito a ser discutido, pois o que chamamos de fatos são justamente os êxitos ou resultados históricos- valem pelo seu efeito a longo prazo, e, é claro, o efeito positivo, ou eficácia de um fato, é sempre positivo para uma das partes interessadas.
Ocorre que nós, habitantes atuais do que se convencionou chamar de história, não vivemos no "longo prazo", no "efeito", ou na "eficácia" -conceito que também já se verificou altamente relativo na história conhecida do passado.
Somos seres em inconstância dinâmica, vivos, com interesses moleculares, subjetivos e se, porventura, temos interesses de maior amplitude social, ainda assim são sempre interesses mediados por condições dinâmicas e em certa medida alheias ao controle absoluto -a não ser, é claro, que se resolvam os interesses com uma bomba entregue diretamente em casa "mais rápido do que uma pizza". Vivemos na atualidade; sujeitos que, por mais interesse que tenham nos fins últimos das ações humanas, vivem não os fins, mas os meios. Não estamos fora da história, avaliando seus fins.
Nós, brasileiros, franceses, tailandeses, americanos soldados e iraquianos civis e militares, estamos todos sujeitos à atividade inapreensível do tempo presente. Essa é nossa vida. Nosso privilégio, em relação aos futuros leitores da história, é conhecermos os meios na sua integridade e pluralidade.
A definição mais plausível de ética, para contrapor-se à definição inicial de pragmática, é a que compõe o pensamento spinoziano, de encontros e paixões alegres (não tristes) para que ocorra a experiência do bem-estar individual e comunitário. Encontros alegres são aqueles que expandem e não escravizam as possibilidades de expressão do corpo e correspondentes idéias na alma. Encontros onde não há senhores nem servos. Encontros livres.
A ética spinoziana não acontece, nem pode acontecer, por sua própria natureza, no futuro ou no passado. Como ela trata dos meios e não dos fins, ela só pode acontecer no presente. Quem vive o meio com sentido ético, já o obtém como fim: o bem-estar.
Viver no presente, ser mais uma criatura do aparelho histórico, mas localizar-se alienadamente no futuro, pré-julgando os fins, avaliando a positividade da guerra, assumindo visadas históricas supostamente globais, estudando os êxitos e as transformações e relevando os meios (só tantos mortos americanos, só tantos mortos iraquianos), olhando imagens pela TV já com sua dimensão histórica (olhar jornalístico, "isso dá notícia"), é o supra-sumo da arrogância e do alheamento. É negar-se como ser vivo, como indivíduo subordinado ao tempo e sua dinâmica inagarrável. É negar-se à ética e assumir, acreditando que isso lhe confere algum poder, a pragmática.
Vamos aos fins, pois eles são necessários! Chega de ingenuidade! Ou seja, chega de vida, do tempo presente! Vamos tornar-nos fatos. Afinal, os fatos são mais duradouros do que as pessoas. Pessoas são joguetes dos fatos. Espertas são as pessoas que, ao invés de submeterem-se ao tempo, apressam-se em fazer parte do futuro. Ao negarem-se a morrer, não sabem que já estão mortas, alienadas da única possibilidade de experimentação de alegria e bem-estar -o presente.


Noemi Jaffe é escritora e professora de literatura, autora de "Folha Explica Macunaíma", entre outros


Texto Anterior: Frase
Próximo Texto: Panorâmica - Cinema: Filme "Nelson Freire" tem sessão gratuita
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.