São Paulo, sexta-feira, 05 de maio de 2006

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CARLOS HEITOR CONY

Memória confessável de um Simca Chambord

Depois de certa idade, tudo o que acontece é lucro. E bota lucro nisso. Evidente que há um custo, as injúrias do tempo que comprometem os "mil acidentes naturais da carne", como lá está no "Hamlet", se não me engano numa fala moralista e óbvia de Polônio -o personagem mais chato de Shakespeare. Um cansaço generalizado das coisas e, para um pessimista de nascença, que já nasceu cansado, nem consolo é aquele versinho do Orestes Barbosa: "Meu avô morreu na luta, o meu pai, pobre coitado, fatigou-se na labuta, por isso nasci cansado".
Mas o lucro é maior, maior do que a saudade que coisas, pessoas e paisagens me deixaram. A moça loura que me mandou um e-mail com um verso perdido da ópera "Turandot", o coro inicial da plebe que vê a Lua surgir para mais uma noite em que um pretendente à princesa será degolado porque não decifrará os três enigmas que lhe serão propostos. "O taciturna, o squalida, o esangue, o amante smunta dei morti." Esses versos, chamando a Lua de taciturna, esquálida, exangue, amante descorada dos mortos, sempre mexeram comigo desde os 22 anos, quando pela primeira vez tomei conhecimento da obra-prima de Puccini. Cinqüenta anos depois, vem a mensagem da desconhecida com esses mesmos versos, a Lua taciturna e esquálida, exangue.
Identifiquei a moça, também de 22 anos, loura, parecida com a Vera Fischer para melhor, voz de gato miando pedindo leite, leite que lhe dei, com generosidade, mais ternura do que amor.
Ontem, enfrentando a doença de um irmão mais velho, internado num CTI, abri a caixa postal por fastio, para nada mesmo, só para fazer alguma coisa. E lá estava o e-mail enviado por uma desconhecida: "Numa noite desta semana, sonhei com você. No sonho, você estava em minha cidade para uma conferência e nos encontramos numa praça. Depois de uma conversa tranqüila, como a de velhos amigos, eu o conduzi até o evento em um Simca Chambord vermelho e branco. Veja só, há anos não paro para me sentar em uma praça; quanto ao carro, nunca vi um, pelo menos ao vivo. Coisas de sonhos. Mas, como vivemos em mundo de ilusões, acordei feliz da vida. Beijos".
Qualquer cronista, qualquer escritor ou artista, recebe mensagens equivalentes, ao lado das inúmeras e merecidas esculhambações por isso ou aquilo. Vez ou outra vem um recado assim, sem nada de extraordinário a não ser num detalhe: o Simca Chambord. Na verdade, tive um, ali quando andava pela faixa dos 40 anos, só que meu carro não era vermelho e branco, mas azul e creme. Não era valente, apesar de bonito. Tinha um apelido cruel: "Belo Antônio", alusão ao filme de Marcelo Mastroianni em que ele fazia o papel de um homem bonito, mas que brochava toda vez que ia para a cama.
Rodei muito com esse carro. Em certo sentido, foi o carro de minha vida. Dele tenho duas fotos: uma em Ouro Preto, onde levei um grupo de amigos que estavam num evento em Belo Horizonte: Flávio Rangel, Dias Gomes, Joaquim Pedro de Andrade e minha namorada da ocasião. Na outra foto, o carro servia de suporte para a câmara de 16 mm que rodava um documentário sobre Otto Maria Carpeaux, dirigido por Maurício Gomes Leite. Na capota, num banco improvisado, o José Carlos Avelar era o cinegrafista e havia uma garota que fazia a continuidade e cujo nome não guardei. Foi no dia em que o Brasil perdeu para Portugal na Copa do Mundo de 1966, o povo em lágrimas pelas ruas, Maurício quis pegar o pessoal chorando, caras tensas e destroçadas, para inserir e editar com cenas da decretação do primeiro Ato Institucional de 1964.
Mas o Simca me deixou outro tipo de recordações, embora não seja dado a nostalgias, apenas à melancolia profissional que me acompanha desde que fiz a primeira comunhão e me apaixonei por uma menina vestida de anjo que fazia parte da procissão dos comungantes. Tudo passou a ser matéria de memória e saudade.
Os cronistas da nova geração são bem mais moços do que eu, têm nostalgia (confessada) pelos cinemas que não existem mais, pelos times por que torceram na mocidade, pelos cheiros de antigamente, pelos filmes que desapareceram no lixo do tempo. Compreendo e me emociono com eles, tenho apenas vergonha de lembrar meus cheiros, o do sabonete Eucalol, das balas Fruna que distribuíam fotos dos artistas daquela época, Ginger Rogers, Ida Lupino, Joan Crawford, Rosalind Russel, Maria Montez, tantas.
O álbum em que grudava as minhas favoritas era o meu "chat" particular, minha sala de visitas virtual, conversava com elas e as amava. Compreendo os jovens de hoje que se ligam na internet em busca de emoções parecidas. Não os invejo. Tive o meu quinhão, e o único preço que paguei pelos meus delírios ficou dentro da relação custo-benefício.
Mas o tempo passou e não há mais tempo para a melancolia. E eis que vem uma desconhecida, sentada num banco de praça, falar num Simca Chambord dos anos 60. Tirante a cor, é o meu Simca que continua andando a meu lado, fazendo as curvas e os labirintos da memória em noites de Lua -a amante descorada dos mortos.


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