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CARLOS HEITOR CONY
Memória confessável de um Simca Chambord
Depois de certa idade, tudo
o que acontece é lucro. E bota lucro nisso. Evidente que há
um custo, as injúrias do tempo
que comprometem os "mil acidentes naturais da carne", como
lá está no "Hamlet", se não me
engano numa fala moralista e óbvia de Polônio -o personagem
mais chato de Shakespeare. Um
cansaço generalizado das coisas
e, para um pessimista de nascença, que já nasceu cansado, nem
consolo é aquele versinho do
Orestes Barbosa: "Meu avô morreu na luta, o meu pai, pobre coitado, fatigou-se na labuta, por isso nasci cansado".
Mas o lucro é maior, maior do
que a saudade que coisas, pessoas
e paisagens me deixaram. A moça
loura que me mandou um e-mail
com um verso perdido da ópera
"Turandot", o coro inicial da plebe que vê a Lua surgir para mais
uma noite em que um pretendente à princesa será degolado porque não decifrará os três enigmas
que lhe serão propostos. "O taciturna, o squalida, o esangue, o
amante smunta dei morti." Esses
versos, chamando a Lua de taciturna, esquálida, exangue,
amante descorada dos mortos,
sempre mexeram comigo desde os
22 anos, quando pela primeira
vez tomei conhecimento da obra-prima de Puccini. Cinqüenta
anos depois, vem a mensagem da
desconhecida com esses mesmos
versos, a Lua taciturna e esquálida, exangue.
Identifiquei a moça, também de
22 anos, loura, parecida com a
Vera Fischer para melhor, voz de
gato miando pedindo leite, leite
que lhe dei, com generosidade,
mais ternura do que amor.
Ontem, enfrentando a doença
de um irmão mais velho, internado num CTI, abri a caixa postal
por fastio, para nada mesmo, só
para fazer alguma coisa. E lá estava o e-mail enviado por uma
desconhecida: "Numa noite desta
semana, sonhei com você. No sonho, você estava em minha cidade para uma conferência e nos
encontramos numa praça. Depois
de uma conversa tranqüila, como
a de velhos amigos, eu o conduzi
até o evento em um Simca Chambord vermelho e branco. Veja só,
há anos não paro para me sentar
em uma praça; quanto ao carro,
nunca vi um, pelo menos ao vivo.
Coisas de sonhos. Mas, como vivemos em mundo de ilusões, acordei feliz da vida. Beijos".
Qualquer cronista, qualquer escritor ou artista, recebe mensagens equivalentes, ao lado das
inúmeras e merecidas esculhambações por isso ou aquilo. Vez ou
outra vem um recado assim, sem
nada de extraordinário a não ser
num detalhe: o Simca Chambord.
Na verdade, tive um, ali quando
andava pela faixa dos 40 anos, só
que meu carro não era vermelho e
branco, mas azul e creme. Não
era valente, apesar de bonito. Tinha um apelido cruel: "Belo Antônio", alusão ao filme de Marcelo Mastroianni em que ele fazia o
papel de um homem bonito, mas
que brochava toda vez que ia para a cama.
Rodei muito com esse carro. Em
certo sentido, foi o carro de minha
vida. Dele tenho duas fotos: uma
em Ouro Preto, onde levei um
grupo de amigos que estavam
num evento em Belo Horizonte:
Flávio Rangel, Dias Gomes, Joaquim Pedro de Andrade e minha
namorada da ocasião. Na outra
foto, o carro servia de suporte para a câmara de 16 mm que rodava um documentário sobre Otto
Maria Carpeaux, dirigido por
Maurício Gomes Leite. Na capota, num banco improvisado, o José Carlos Avelar era o cinegrafista
e havia uma garota que fazia a
continuidade e cujo nome não
guardei. Foi no dia em que o Brasil perdeu para Portugal na Copa
do Mundo de 1966, o povo em lágrimas pelas ruas, Maurício quis
pegar o pessoal chorando, caras
tensas e destroçadas, para inserir
e editar com cenas da decretação
do primeiro Ato Institucional de
1964.
Mas o Simca me deixou outro
tipo de recordações, embora não
seja dado a nostalgias, apenas à
melancolia profissional que me
acompanha desde que fiz a primeira comunhão e me apaixonei
por uma menina vestida de anjo
que fazia parte da procissão dos
comungantes. Tudo passou a ser
matéria de memória e saudade.
Os cronistas da nova geração
são bem mais moços do que eu,
têm nostalgia (confessada) pelos
cinemas que não existem mais,
pelos times por que torceram na
mocidade, pelos cheiros de antigamente, pelos filmes que desapareceram no lixo do tempo. Compreendo e me emociono com eles,
tenho apenas vergonha de lembrar meus cheiros, o do sabonete
Eucalol, das balas Fruna que distribuíam fotos dos artistas daquela época, Ginger Rogers, Ida Lupino, Joan Crawford, Rosalind Russel, Maria Montez, tantas.
O álbum em que grudava as minhas favoritas era o meu "chat"
particular, minha sala de visitas
virtual, conversava com elas e as
amava. Compreendo os jovens de
hoje que se ligam na internet em
busca de emoções parecidas. Não
os invejo. Tive o meu quinhão, e o
único preço que paguei pelos
meus delírios ficou dentro da relação custo-benefício.
Mas o tempo passou e não há
mais tempo para a melancolia. E
eis que vem uma desconhecida,
sentada num banco de praça, falar num Simca Chambord dos
anos 60. Tirante a cor, é o meu
Simca que continua andando a
meu lado, fazendo as curvas e os
labirintos da memória em noites
de Lua -a amante descorada
dos mortos.
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