|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NELSON ASCHER
Para racionalizar o mercado de traduções
Não valeria mais a pena dirigir a atenção dos tradutores para obras que seguem inéditas?
|
NUNCA TEREMOS um mercado
editorial de traduções literárias tão opulento e variado
quanto o anglo-americano, um mercado que pode se dar ao luxo de, por
exemplo, oferecer ao público, em
poucos anos, duas traduções completas da "Argonáutica" de Apolônio
de Rodes, duas da "Farsália" de Lucano e uma da "Tebaida" de Estácio, todas em verso.
Mas não é por isso que um pouco
mais de ordem, disciplina e racionalidade não ajudariam nosso mercado
a dar um salto qualitativo. A ausência
dessas, que poderia começar a ser
corrigida com um banco de dados
que arrolasse e avaliasse o que já se
traduziu no Brasil, acaba acarretando um desperdício de energia que seria mais útil se aplicada a projetos
não redundantes.
O caso exemplar é o da "Comédia
Humana" de Balzac, título genérico
sob o qual se reúne sua produção ficcional madura, ou seja, várias dezenas de contos, novelas e romances
interconectados. Traduzida no Brasil entre os anos 1940/50 e publicada
pela Editora Globo em 17 volumes,
esta, uma das maiores empreitadas
editoriais do país, resultou do esforço
coletivo de diversos tradutores trabalhando sob a coordenação de Paulo Rónai, que não apenas reviu meticulosamente o texto em português
como acrescentou-lhe uma bela biografia do autor, além de milhares de
notas explicativas, selecionando,
ademais, ensaios de escritores e críticos consagrados para prefaciar cada
tomo.
Reeditado poucas vezes desde então, o conjunto está agora fora do
mercado e é difícil lhe achar qualquer
um dos volumes até em sebos. Ao
que parece, o que impede uma nova
publicação é a falta de acordo entre
editores e os herdeiros do organizador, algo que, obviamente, faz parte
do jogo legítimo do mercado e se resolve mediante negociações.
Acontece que se, no entretempo,
os leitores perdem a oportunidade
de ler a excelente tradução dessa
obra em arquipélago que se encontra
no centro do universo romanesco do
Ocidente, em breve a situação se consolidará em prejuízo de todos, inclusive dos herdeiros. Pois, atendendo à
demanda, outras editoras, em especial a L&PM, têm lançado suas próprias traduções, algumas muito boas,
outras nem tanto, dos livros individuais. Assiste-se, portanto, a uma
corrida contra o tempo, porque, tão
logo o núcleo da "Comédia Humana"
esteja disponível em traduções diferentes, ainda que inferiores, a clientela potencial para a edição completa
e anotada encolherá sensivelmente.
Há tantas excelentes traduções já
esgotadas e sem perspectiva próxima
de republicação que seria lícito tomá-las antes como a regra geral do
que como exceções infelizes.
Restringindo-nos somente aos
clássicos franceses, conviria mencionar "Servidão e Grandeza Militares",
de Vigny, traduzido pelo próprio Rónai, a coletânea da ficção de Prosper
Mérimée (cuja novela "Carmen" celebrizou-se ao ser convertida na ópera homônima de Bizet) traduzida por
Mário Quintana, "Bouvard e Pécuchet", de Flaubert, traduzido por Galeão Coutinho e Augusto Meyer.
A não ser que se conseguissem versões capazes de eclipsar aquelas
-algo improvável-, não valeria
mais a pena dirigir a atenção dos tradutores contemporâneos para obras
que seguem inéditas na língua, como, digamos, os aforismos de Joseph Joubert?
Não que o problema seja novo.
Meio século atrás, quando saíram,
quase simultaneamente, três traduções de "As Relações Perigosas", de
Choderlos de Laclos, duas delas tornaram-se imediatamente irrelevantes, pois a terceira vinha assinada
por Carlos Drummond de Andrade.
Hoje, contudo, os departamentos
universitários de Letras, operando
com editores, críticos e consulados,
teriam condições de criar na internet sites cujas informações auxiliariam tanto a recolocar em circulação
traduções esquecidas como a maximizar o mais escasso dos recursos, a
saber, tradutores competentes.
Se, quando se trata de prosa, o
bom senso manda primeiro exaurir
o repertório de obras inéditas no
país para só depois buscar superar
traduções dignas com outras mais
elaboradas, o que ocorre com a poesia é precisamente o contrário. Não
obstante também nessa arte existir
um repertório mínimo que configuraria um dos âmagos da "literatura
universal" postulada por Goethe, o
fato é que o equivalente lírico da tradução notável de um romance clássico não seria tal ou qual entre suas
versões, mas, cotejadas e comparadas, todas elas juntas. Tal paradoxo
contribui para tornar ainda mais urgente a reedição de pontos altos da
tradução poética nacional, como o
Baudelaire, o Verlaine e demais poetas franceses recriados por Guilherme de Almeida.
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Prêmio: Destaques de 2007 recebem troféu da APCA Índice
|