São Paulo, segunda-feira, 05 de maio de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NELSON ASCHER

Para racionalizar o mercado de traduções


Não valeria mais a pena dirigir a atenção dos tradutores para obras que seguem inéditas?

NUNCA TEREMOS um mercado editorial de traduções literárias tão opulento e variado quanto o anglo-americano, um mercado que pode se dar ao luxo de, por exemplo, oferecer ao público, em poucos anos, duas traduções completas da "Argonáutica" de Apolônio de Rodes, duas da "Farsália" de Lucano e uma da "Tebaida" de Estácio, todas em verso.
Mas não é por isso que um pouco mais de ordem, disciplina e racionalidade não ajudariam nosso mercado a dar um salto qualitativo. A ausência dessas, que poderia começar a ser corrigida com um banco de dados que arrolasse e avaliasse o que já se traduziu no Brasil, acaba acarretando um desperdício de energia que seria mais útil se aplicada a projetos não redundantes.
O caso exemplar é o da "Comédia Humana" de Balzac, título genérico sob o qual se reúne sua produção ficcional madura, ou seja, várias dezenas de contos, novelas e romances interconectados. Traduzida no Brasil entre os anos 1940/50 e publicada pela Editora Globo em 17 volumes, esta, uma das maiores empreitadas editoriais do país, resultou do esforço coletivo de diversos tradutores trabalhando sob a coordenação de Paulo Rónai, que não apenas reviu meticulosamente o texto em português como acrescentou-lhe uma bela biografia do autor, além de milhares de notas explicativas, selecionando, ademais, ensaios de escritores e críticos consagrados para prefaciar cada tomo.
Reeditado poucas vezes desde então, o conjunto está agora fora do mercado e é difícil lhe achar qualquer um dos volumes até em sebos. Ao que parece, o que impede uma nova publicação é a falta de acordo entre editores e os herdeiros do organizador, algo que, obviamente, faz parte do jogo legítimo do mercado e se resolve mediante negociações.
Acontece que se, no entretempo, os leitores perdem a oportunidade de ler a excelente tradução dessa obra em arquipélago que se encontra no centro do universo romanesco do Ocidente, em breve a situação se consolidará em prejuízo de todos, inclusive dos herdeiros. Pois, atendendo à demanda, outras editoras, em especial a L&PM, têm lançado suas próprias traduções, algumas muito boas, outras nem tanto, dos livros individuais. Assiste-se, portanto, a uma corrida contra o tempo, porque, tão logo o núcleo da "Comédia Humana" esteja disponível em traduções diferentes, ainda que inferiores, a clientela potencial para a edição completa e anotada encolherá sensivelmente.
Há tantas excelentes traduções já esgotadas e sem perspectiva próxima de republicação que seria lícito tomá-las antes como a regra geral do que como exceções infelizes.
Restringindo-nos somente aos clássicos franceses, conviria mencionar "Servidão e Grandeza Militares", de Vigny, traduzido pelo próprio Rónai, a coletânea da ficção de Prosper Mérimée (cuja novela "Carmen" celebrizou-se ao ser convertida na ópera homônima de Bizet) traduzida por Mário Quintana, "Bouvard e Pécuchet", de Flaubert, traduzido por Galeão Coutinho e Augusto Meyer.
A não ser que se conseguissem versões capazes de eclipsar aquelas -algo improvável-, não valeria mais a pena dirigir a atenção dos tradutores contemporâneos para obras que seguem inéditas na língua, como, digamos, os aforismos de Joseph Joubert?
Não que o problema seja novo. Meio século atrás, quando saíram, quase simultaneamente, três traduções de "As Relações Perigosas", de Choderlos de Laclos, duas delas tornaram-se imediatamente irrelevantes, pois a terceira vinha assinada por Carlos Drummond de Andrade. Hoje, contudo, os departamentos universitários de Letras, operando com editores, críticos e consulados, teriam condições de criar na internet sites cujas informações auxiliariam tanto a recolocar em circulação traduções esquecidas como a maximizar o mais escasso dos recursos, a saber, tradutores competentes.
Se, quando se trata de prosa, o bom senso manda primeiro exaurir o repertório de obras inéditas no país para só depois buscar superar traduções dignas com outras mais elaboradas, o que ocorre com a poesia é precisamente o contrário. Não obstante também nessa arte existir um repertório mínimo que configuraria um dos âmagos da "literatura universal" postulada por Goethe, o fato é que o equivalente lírico da tradução notável de um romance clássico não seria tal ou qual entre suas versões, mas, cotejadas e comparadas, todas elas juntas. Tal paradoxo contribui para tornar ainda mais urgente a reedição de pontos altos da tradução poética nacional, como o Baudelaire, o Verlaine e demais poetas franceses recriados por Guilherme de Almeida.


Texto Anterior: Resumo das novelas
Próximo Texto: Prêmio: Destaques de 2007 recebem troféu da APCA
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.