São Paulo, segunda-feira, 05 de junho de 2006

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GUILHERME WISNIK

Cidade Jardim ou anticidade?


Será possível fingir que pobres e ricos não se tocam e querer um futuro tranqüilo sem integração social?

HÁ DUAS semanas, ainda sob o alerta dos confrontos entre o PCC e a polícia, um evento pacífico nos alertou para aspectos diversos da disputa urbana em pauta. Refiro-me à manifestação de 200 moradores da favela Jardim Panorama em frente à festa de lançamento do Parque Cidade Jardim, um enorme complexo imobiliário de luxo à beira da marginal Pinheiros, que contará com nove edifícios residenciais, quatro de escritórios e um shopping com grifes famosas.
Em estilo neoclássico, o projeto é assinado pelo arquiteto Júlio Neves (também incorporador imobiliário e presidente do Masp) e vende a idéia de ser a ponta-de-lança de uma nova urbanidade para os ricos, que combina conforto, segurança, trabalho e livre ostentação do consumo.
Ao lado do futuro condomínio, está a favela, estabelecida há mais de 20 anos e com um padrão de urbanização razoável.
Mas qual era, então, o motivo da manifestação? Como se divulgou na imprensa, os moradores vieram mostrar aos novos vizinhos, e à sociedade, que eles "existem". Algo que talvez pareça óbvio, mas não é.
Pode-se dizer que as ações do PCC tiveram, também, o mesmo sentido. Com a diferença de que, nesse caso, foram ações violentas generalizadas, sem orientação política ou ideológica. No caso dos moradores do Jardim Panorama, ao contrário, se trata de uma lição de civilidade no "coração" da riqueza, numa ação de resistência contra o seu previsível aniquilamento.
Ambas, no entanto, explicitam o abismo social crescente na cidade, a "dinâmica de desintegração" suicida na qual estamos metidos, cobrando da elite um olhar sobre a questão. Isto é: será possível fingir que esses dois mundos não se tocam e pretender um futuro tranqüilo sem qualquer resgate de um projeto comum de integração social?
É claro que, num plano imediato, as ações violentas aprofundam essa divisão, reforçando o encastelamento da classe AAA em condomínios fechados, auto-suficientes e ostentatórios. Mas será esse o projeto de futuro da nossa elite?
Voltemos à favela. Os seus moradores estão conscientes de que a dinâmica territorial urbana é um processo de luta. E já conhecem as truculentas estratégias de intimidação usadas em remoções anteriores, como na Operação Urbana Água Espraiada. Mas quais são as forças em disputa? Se as "leis do mercado" imobiliário empurram os pobres para as periferias, longe dos empregos e serviços urbanos básicos, o poder público é a instância que deve garantir um princípio democrático no uso dos espaços da cidade.
Hoje, vive-se uma situação paradoxal: de um lado, as "parcerias público-privadas" tendem a privatizar esse princípio coletivista. De outro, os instrumentos públicos de defesa dos interesses sociais se solidificaram, com a definição das "Zonas Especiais de Interesse Social" no Plano Diretor e a criação do Estatuto da Cidade. A manifestação do Jardim Panorama é, portanto, uma aposta na efetividade dos instrumentos democráticos. E o seu sucesso ou fracasso, um índice da viabilidade do futuro que queremos construir.


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