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CONTARDO CALLIGARIS
O luxo, Dorfles e Saint Laurent
As marcas de luxo prometem um mundo encantado: um devaneio de prazer e poder
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BASTA TRANSITAR por saguões
de hotéis e salas de espera de
aeroportos para descobrir
que, pelo mundo afora, proliferam
publicações suntuosas (papel glacê e
quadricromia), cujo tema é o luxo.
Nessas revistas, as matérias, em geral, exaltam a vida prazerosa de
quem consome os objetos propostos
nos anúncios.
Dana Thomas, em "Deluxe - Como o Luxo Perdeu o Brilho" (Campus), conta como, em poucas décadas, fabricantes artesanais de produtos quase únicos (e por isso caríssimos) se transformaram em marcas que devem boa parte de seu faturamento a acessórios industrializados, acessíveis à classe média. Eis a
proposta: você não pode gastar uma
fortuna para o terno ou o vestido de
uma marca de luxo, mas, por um
preço compatível com seus recursos, pode comprar um perfume, um
cinto, uma carteira ou uma bolsa da
mesma marca.
Ora, para que você deseje esse
fragmento de luxo, é necessário que
a marca prometa o acesso a um outro mundo, encantado: um devaneio
de prazer e poder. Como?
Por exemplo, as marcas concentram seus comércios em ruas ou
shoppings especializados (como o
Cidade Jardim, que acaba de abrir
em São Paulo), que são universos
oníricos, separados das cidades reais
nas quais vivemos e iguais entre si,
de São Paulo a Milão. Ou ainda as
marcas financiam revistas que são a
imprensa dessa Disneylândia global:
mulheres e homens bonitos, palácios, jatinhos e, ao lado desse catálogo do inalcançável, os acessíveis
acessórios, que são chamados bens
de entrada ou de ingresso.
Falando em ingresso, a modesta
compra de um acessório vale mesmo como a aquisição de uma entrada de cinema, com a diferença de
que, neste caso, você terá na mão um
pedacinho do cenário, alimentando
assim sua ilusão de fazer parte da
história. Conseqüência: não é raro
que alguém passe as férias hospedando-se em espeluncas ou sendo
enlatado pelas companhias aéreas,
mas volte triunfante com um novo
acessório cujo valor teria sido suficiente para que ele vivesse férias
verdadeiramente prazerosas.
Em suma, a indústria do luxo se
parece, hoje, com o comércio de
lembrancinhas na porta dos santuários: a posse da "relíquia" produziria
a santidade do peregrino.
Eu cismava nesse estado de espí-
rito quando, logo numa revista de
luxo, "THI" (fevereiro/maio 2008),
entre iates e relógios, esbarrei nu-
ma entrevista concedida por Gillo
Dorfles.
Dorfles, designer, pintor e professor de estética, é o autor de um grande livro, "O Devir das Artes" (Martins Fontes), que li no começo dos
anos 1960 e foi minha porta de entrada na arte contemporânea. Ele
tem hoje 98 anos, mas não é nada rabugento. Cito a entrevista:
"O design é, sem dúvida, uma das
bases de nossa vida relacional. Com
o declínio do artesanato, o objeto
produzido industrialmente se tornou objeto de uso cotidiano. Do talher ao carro, dos sapatos aos esquis,
do móvel ao computador, trata-se
sempre de objetos produzidos em
série. O design leva em conta o aspecto funcional, mas sempre com
um quociente estético. Houve um
aumento da esteticização da vida cotidiana pelo design, (...), enquanto
em épocas anteriores, o objeto de
uso era uma coisa amorfa, sem caraterísticas estéticas... A população é
educada artisticamente pelo design,
pela arquitetura, pela moda, muito
mais do que pela escultura ou pela
pintura de vanguarda".
Para Dorfles, o cuidado com a dimensão estética do mundo melhora
nossa relação com as coisas, com os
outros e com nós mesmos.
É fácil aplicar essa consideração,
por exemplo, à obra de Yves Saint
Laurent, que morreu nestes dias:
sua industrialização do luxo (da alta
costura ao prêt-à-porter) espalhou
uma nova estética feminina que certamente contribuiu a transformar o
lugar das mulheres no mundo.
Outro exemplo: quando escolho
um espremedor de laranjas, meu
cuidado com a forma e as cores (e
não apenas com a funcionalidade)
humaniza minha relação com
quem, a cada manhã, espreme minha laranja.
Concluo com Dorfles. Os fragmentos de ilusão vendidos pela indústria do luxo satisfazem a incerteza narcisista de emergentes inseguros, que, não podendo comprar seu
lote no "paraíso", ostentam a bugiganga promocional do empreendimento. Mas talvez, na popularização
dos apetrechos do luxo, também se
expresse o desejo de um mundo em
que a elegância seria uma maneira
gentil e mais humana de ser. Tomara que Dorfles tenha razão.
ccalligari@uol.com.br
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