São Paulo, sábado, 05 de junho de 2010

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OPINIÃO CINEMA

Roman Polanski, o senhor das vítimas

Escritor Alan Pauls comenta o filme "O Escritor Fantasma", sobre o "ghost-writer" de um político controverso

ALAN PAULS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Roman Polanski fez filmes de terror psicológico e cômico, dramas satânicos, filmes noir, comédias sexuais de verão, thrillers hitchcockianos, farsas de bucaneiros, melodramas e fábulas de sobrevivência, mas essa prodigalidade de gêneros não faz mais que sublinhar a pergunta obsessiva, quase uma ideia fixa, que assombra seu cinema há mais de 50 anos: o que quer dizer ser uma vítima?
"O Escritor Fantasma" é isso -a descrição paciente e prazerosa do processo pelo qual um autor anônimo se converte em alguém excepcional como uma vítima.
As referências à história recente são óbvias. Há prisioneiros iraquianos entregues à tortura, um ex-primeiro-ministro inglês acusado de crimes de guerra e com atitude servil diante de um governo americano republicano.
Nenhum desses fogos de artifício eclipsa o fato de que "O Escritor Fantasma" tece sua teia em torno do pobre fantasma do título, esse escritor sem atributos que, além disso, se gaba de um privilégio intolerável: não saber nada de política.
É o que o Fantasma responde quando lhe perguntam por que deveriam contratá-lo para retomar a redação das memórias do tal primeiro-ministro inglês, um calhamaço que o "ghost-writer" anterior deixou sem concluir porque morreu. Ele não sabe nada de política; irá diretamente para aquilo que menos se conhece dos políticos: o coração.

PARANOIA E POLÍTICA
É a grande lei paranoica de Polanski. O personagem não sabe nada de política? A política o seduzirá, o envolverá, o obcecará; cairá sobre ele como um raio. Há algo do clima agourento e profético de "O Iluminado", de Kubrick, na cena da reunião editorial em que o Fantasma consegue que o contratem.
A desproporção entre o contrato e o herói é enorme, e o resto do filme torna-se a crônica dos efeitos desse problema de escala. Sabemos que o contrato exige que o Fantasma assuma o lugar de outro, e todos os que assistimos a "O Inquilino" sabemos como terminam essas experiências de substituição nos filmes de Polanski. "O Escritor Fantasma" é um tratado notável sobre outro dos temas polanskianos: a alienação.
Existem vítimas culpadas, ou toda vítima é por definição inocente? A pergunta percorre "O Escritor Fantasma", sem sobressaltar. Das vítimas evidentes -o primeiro-ministro Adam Lang e o Fantasma-, o diretor, sádico, se diverte mais com o Fantasma, vítima inocente, mas está mais próximo de Lang, a culpada.
Lang se descobre enredado no mesma dilema que marca a vida de Polanski desde 1978, quando foi acusado de abusar de uma menor e fugiu da Justiça americana: viver como expatriado, livre, ou viver preso em seu país. É difícil saber o teor das decisões que Polanski tomou na montagem de "O Escritor Fantasma". Assistindo ao filme, ninguém diria que o dissabor de se ver privado da liberdade aos 74 anos o tenha tornado mais sensível ou complacente com as vítimas que tinha nas mãos então.
Polanski parece adotar com suas criaturas de ficção a mesma política que adotou com as próprias experiências de vítima: um misto subversivo de obstinação, crueza e amor pelo riso, antídotos à desesperança, mas também aos álibis da vitimização.

ALAN PAULS é escritor argentino, autor de "O Passado" (Cosac Naify).

Tradução de CLARA ALLAIN



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