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OPINIÃO CINEMA
Roman Polanski, o senhor das vítimas
Escritor Alan Pauls comenta o filme "O Escritor Fantasma", sobre o "ghost-writer" de um político controverso
ALAN PAULS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Roman Polanski fez filmes
de terror psicológico e cômico, dramas satânicos, filmes
noir, comédias sexuais de verão, thrillers hitchcockianos,
farsas de bucaneiros, melodramas e fábulas de sobrevivência, mas essa prodigalidade de gêneros não faz mais
que sublinhar a pergunta obsessiva, quase uma ideia fixa, que assombra seu cinema
há mais de 50 anos: o que
quer dizer ser uma vítima?
"O Escritor Fantasma" é isso -a descrição paciente e
prazerosa do processo pelo
qual um autor anônimo se
converte em alguém excepcional como uma vítima.
As referências à história
recente são óbvias. Há prisioneiros iraquianos entregues
à tortura, um ex-primeiro-ministro inglês acusado de crimes de guerra e com atitude
servil diante de um governo
americano republicano.
Nenhum desses fogos de
artifício eclipsa o fato de que
"O Escritor Fantasma" tece
sua teia em torno do pobre
fantasma do título, esse escritor sem atributos que,
além disso, se gaba de um
privilégio intolerável: não saber nada de política.
É o que o Fantasma responde quando lhe perguntam por que deveriam contratá-lo para retomar a redação das memórias do tal primeiro-ministro inglês, um
calhamaço que o "ghost-writer" anterior deixou sem concluir porque morreu. Ele não
sabe nada de política; irá diretamente para aquilo que
menos se conhece dos políticos: o coração.
PARANOIA E POLÍTICA
É a grande lei paranoica de
Polanski. O personagem não
sabe nada de política? A política o seduzirá, o envolverá, o
obcecará; cairá sobre ele como um raio. Há algo do clima
agourento e profético de "O
Iluminado", de Kubrick, na
cena da reunião editorial em
que o Fantasma consegue
que o contratem.
A desproporção entre o
contrato e o herói é enorme, e
o resto do filme torna-se a
crônica dos efeitos desse problema de escala.
Sabemos que o contrato
exige que o Fantasma assuma o lugar de outro, e todos
os que assistimos a "O Inquilino" sabemos como terminam essas experiências de
substituição nos filmes de
Polanski. "O Escritor Fantasma" é um tratado notável sobre outro dos temas polanskianos: a alienação.
Existem vítimas culpadas,
ou toda vítima é por definição inocente? A pergunta
percorre "O Escritor Fantasma", sem sobressaltar.
Das vítimas evidentes -o
primeiro-ministro Adam
Lang e o Fantasma-, o diretor, sádico, se diverte mais
com o Fantasma, vítima inocente, mas está mais próximo de Lang, a culpada.
Lang se descobre enredado no mesma dilema que
marca a vida de Polanski desde 1978, quando foi acusado
de abusar de uma menor e fugiu da Justiça americana: viver como expatriado, livre,
ou viver preso em seu país.
É difícil saber o teor das decisões que Polanski tomou
na montagem de "O Escritor
Fantasma". Assistindo ao filme, ninguém diria que o dissabor de se ver privado da liberdade aos 74 anos o tenha
tornado mais sensível ou
complacente com as vítimas
que tinha nas mãos então.
Polanski parece adotar
com suas criaturas de ficção
a mesma política que adotou
com as próprias experiências
de vítima: um misto subversivo de obstinação, crueza e
amor pelo riso, antídotos à
desesperança, mas também
aos álibis da vitimização.
ALAN PAULS é escritor argentino, autor de
"O Passado" (Cosac Naify).
Tradução de CLARA ALLAIN
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