São Paulo, sábado, 05 de junho de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PERFIL BILL CLEGG

Meus lugares escuros

Agente literário americano que quase perdeu carreira em ascensão para o vício em crack e garotos de programa lança autobiografia sobre a experiência, volta ao mercado livreiro e prepara nova obra sobre as recaídas que teve logo após a saída da clínica de reabilitação

DENNY LEE
DO "NEW YORK TIMES"

Billy Clegg, agente literário e usuário de crack em recuperação, procura um assento no bar da cobertura do Gansevoort Hotel. "Esta é a primeira vez que volto aqui." A afirmação alude a um episódio sórdido no qual se registrou no hotel sob nome falso e passou três semanas em orgias regadas a crack, garotos de programa e vodca.
Parecia que o mundo literário nova-iorquino inteiro tinha testemunhado o fato. Editores cochichavam, escritores transmitiam fofocas e revistas especializadas publicavam notinhas citando "razões pessoais" para o sumiço de Clegg. O assunto virou um livro de memórias, "Portrait of an Addict as a Young Man" (retrato de um viciado quando jovem). Com lançamento previsto para o próximo mês, o livro acompanha o mergulho no consumo de crack em 2005, quando Clegg parou repentinamente de aparecer na agência literária que fundou, Burnes & Clegg, deixando escritores, sócia e namorado.
Boa parte da história transcorre em uma catacumba de hotéis chiques que Clegg converteu em antros sofisticados de crack, dando cabo de quase US$ 70 mil.
Não é uma história original, mas é relatada em detalhes lancinantes e em tom pragmático que não corresponde ao horror real. Houve a primeira vez em que ele experimentou crack ("Tem sabor de remédio ou fluido de limpeza, mas também é um pouco doce, como limões"). O encontro com um taxista ("Quero o esquecimento borrado do sexo que deixa o corpo exaurido").
Ou a vez em que o namorado o assiste fumar crack e transar com um garoto de programa brasileiro ("Vergonha, prazer, preocupação e aprovação colidem e o pior do pior deixa de parecer tão ruim assim").
Igualmente dolorosos são os flashbacks em que ele retorna a uma infância atormentada por uma bizarra incapacidade de urinar quando quisesse. "O menino é um bicho em pânico -saltando espasmodicamente e beliscando-se diante do vaso."

SEGREDOS
Os dois fios narrativos podem parecer desconexos, mas, escondidos na persona cuidadosamente cultivada de Clegg (o agente talentoso, dotado de ouvido discernidor; o anfitrião sofisticado; o agente editorial -estavam esses segredos monstruosos.
E, amplificando-os, inseguranças arraigadas quanto às condições de fazer sucesso em uma cidade onde todos pareciam ser mais ricos, nascidos em famílias melhores e formados em universidades mais tradicionais que ele.
"Parecia que todos tinham um padrinho que era algum editor famoso, ou então que passavam seus verões no Maine com escritores famosos", diz Clegg, que cresceu na zona rural de Connecticut, é filho de um piloto da TWA e estudou no Washington College, uma instituição pequena em Maryland.
Ele se recorda de fazer visitas a Nova York quando tinha 20 anos e sentir-se um peixe fora d'água. "Éramos tão não sofisticados. Comíamos comida chinesa em Murray Hill e achávamos a coisa mais glamourosa."
Depois de fazer o curso Radcliffe Publishing em 1993, Clegg conseguiu emprego de baixo escalão na Robbins Office, que representava muitos escritores da "New Yorker", e se mudou para Nova York. "Quando comecei, não sabia a diferença entre a revista "New York" e a "New Yorker"."
Mas não demorou a ser promovido a agente. Clegg permaneceu na Robbins até 2001, quando partiu para abrir uma pequena agência própria com Sarah Burnes, amiga que conheceu nos círculos editoriais. A ascensão foi rápida, mas a queda seria quase suicida.
No início de 2005, depois de um espasmo de consumo de vodca, um traficante de crack e um vidro de soníferos, sua vida implodiu. A agência literária se dissolveu. O namorado com quem estivera havia oito anos se foi.

REDENÇÃO
Todo bom livro de memórias sobre um vício oferece também a redenção: a de Clegg, previsivelmente, foi uma clínica de reabilitação. Lá, escreveu o diário que, mais tarde, se converteria em seu livro de memórias.
A obra passa propositalmente por cima do fato de que, depois do internamento, Clegg se mudou para um apartamento em Chelsea, onde vendeu duas fotos de William Eggleston por US$ 20 mil para financiar recaídas. "Os mesmos motoristas de táxi. A mesma paranoia. O mesmo desejo de morrer." Mas, um dia, ele parou.
Ao longo de duas horas, ele mapeia o arco de sua vida pós-reabilitação: as reuniões do programa de 12 passos, o fato de continuar solteiro e como abriu caminho para ser agente literário novamente.
Espantoso foi o grande número de escritores que o seguiram para a William Morris, incluindo os que tinham se transferido para outras agências, entre eles Heather Clay, autora de "Losing Charlotte", e Nick Flynn, autor de um livro de memórias cujo título explícito não pode ser publicado aqui.
Eles elogiam a facilidade de Clegg de penetrar na cabeça de um escritor, o manuseio delicado de manuscritos e as tratativas pragmáticas e intransigentes com editoras. "Ele era um leitor quase ideal", disse Salvatore Scibona, um dos primeiros autores a voltar a fechar contrato com Clegg. "Fez a leitura mais profunda do livro que jamais alguém fez."
Clientes também dizem que Clegg se mostra como escritor, ele próprio -introspectivo e comedido-, não sendo afeito às pretensões e ao histrionismo usuais dos agentes. Isso ficou claro quando a notícia de que o próprio Clegg estava escrevendo um livro vazou.

JORRO
Clegg escreveu a maior parte do livro na fazenda de um amigo. Ele disse que se prendeu à mesa da cozinha por três semanas até ter 130 páginas prontas. "A coisa mais ou menos jorrou de mim, como uma transcrição", disse.
Até o final daquela semana, Walsh já tinha vendido o manuscrito à Little, Brown. Consta que Clegg teria recebido um adiantamento de US$ 350 mil, valor impressionante para um escritor de primeira viagem (Walsh não confirmou esse número). Em janeiro, também assinou contrato para um segundo livro, intitulado temporariamente "90 Days" (90 dias), que vai explorar as semanas pós-internação.
Quando a entrevista no hotel finalmente termina, Clegg parece estar aliviado porque não foi derramado sangue algum. Com o sol se pondo sobre o rio Hudson, veste o casaco e volta para casa a pé.

Tradução de CLARA ALLAIN



Texto Anterior: Ficção/Não-Ficção
Próximo Texto: Frases
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.