São Paulo, sexta, 5 de junho de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MUTANTES
"Technicolor" seria dos LPs mais marcantes dos 70

da Reportagem Local

Quem quer que ouça "Technicolor" hoje, 27 anos após sua gravação, será forçado a admitir: o álbum que não houve dos Mutantes teria tudo para ser um dos mais marcantes e influentes concebidos por artistas brasileiros nos 70.
Pior: ele tinha nível -técnico e artístico- internacional. Se a idéia mirabolante de lançamento no exterior tivesse vingado, não é difícil imaginar que o pequeno "boom" vivido hoje lá fora acontecesse então, em instante de existência e auge criativo da banda que é ainda o maior evento pop já testemunhado pelo Brasil.
A história da MPB provavelmente teria seguido outro curso. Mutantes em "Technicolor" são mais impactantes do que os Beatles (então já finados) conseguiam ser em seus anos finais.
No próprio Brasil, explosão tropicalista à parte, não havia -e não houve, até hoje- nada que se aproximasse da revolução criativa promovida pelos Mutantes.
O Brasil vivia anestesiado por batalhas entre cantores de protesto e cantores alienados, depois pelo AI-5. Não havia tempo nem perspectiva para que se antevisse aqui uma entidade que dava seus primeiros passos -a pop art, que com o Velvet Underground do mecenas Andy Warhol já ensaiava sua entrada no cenário musical.
Quem desempenhava tal papel eram os tropicalistas -e os Mutantes, tradicionalmente, são tidos como mascotinhos do movimento. Invertida a perspectiva comum, pode se notar Gilberto Gil e Caetano Veloso sorvendo intelectualmente o caldo espontâneo em que Mutantes estavam mergulhados, rumo à música pop de primeira grandeza.
Tudo isso até hoje o subdesenvolvimento brasileiro -se os dirigentes de gravadoras são cidadãos brasileiros representativos- teima em ignorar. Mutantes nunca foram bons vendedores de discos, e isso a PolyGram sabe mais do que ninguém. O caso é que isso não interessa. Privar público e artistas brasileiros de "Technicolor" é sonegação, sequestro.
Pois ali o que se encontra é lição de pop vanguardista, do início ao fim. Nas mãos de um produtor experiente (Bee Gees à época eram bons aprendizes de Beatles, não esqueça) e de um estúdio de primeira, os Mutantes se mostraram capazes de produzir um prodígio.
Tudo é impecável em "Technicolor". Os arranjos instrumentais são uma pletora, um transbordamento de soluções criativas a despejar em ouvidos virgens saberes tropicalistas, tropicais.
"Bat Macumba", o poeminha concreto de Caetano e Gil, é um espanto. Rita, Arnaldo e Sérgio aparecem enlouquecidos, improvisando, simulando brincadeiras sexuais (Rita, mais que os outros, chega a simular um orgasmo brejeiro, de causar inveja a qualquer Gretchen do pedaço) -pleno 71.
Cantando, também. Coros de vozes afinadas, ensaiadas, às raias da perfeição predominam em total harmonia. Rita, principalmente, revela-se, para quem ainda não soubesse, intérprete de tino, com mil soluções inspiradas prontas na manga por segundo.
Talvez a intérprete mais inteligente dos 90, Marisa Monte, nunca tenha ouvido "Technicolor" (ouviu por certo os cinco geniais álbuns brasileiros dos Mutantes) -mas é ali, na voz ginasiana de Rita, que reside metade do bem-cantar da moça.
As versões para o inglês são impagáveis. A obra-prima "Minha Menina", de Jorge Ben, devia causar pontos de interrogação na testa de cada gringo que a ouvisse. "Ela é minha menina" vira "oba, oba, she's my shushu", pode?
"Ando Meio Desligado" torna-se "I Feel a Little Spaced Out" -precisa título mais tecno? A nordestina "Maria Fulô" continua uma orgia, mas aqui mais lânguida, infantilizada, uma lambida do Brasil no Primeiro Mundo.
"Panis et Circensis" vem forrada de onomatopéias -"cra-cra- cra-cra, suiuiuiu", mas não pense nunca em Mamonas. Logo em seguida, surgem vocais doídos, dramáticos, Arnaldo em destaque ao fundo -eles podiam tudo.
Procure o nível de excelência ali configurado em Chico Science, Marisa Monte, Fernanda Abreu, Carlinhos Brown, Skank ou quem quer que seja. Não há.
Nem é por nomes como os de cima que a PolyGram mete a viola dos Mutantes dentro do saco. As prioridades que inviabilizam o desenlace de "Technicolor" são da natureza de É o Tchan, Banda Eva, Cheiro de Amor -todos colegas de selo dos Mutantes vendendo milhões de cópias, enquanto gaviões tipo David Byrne tomam conta do pedaço. Viva o Brasil.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.