São Paulo, Sábado, 05 de Junho de 1999
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RESENHA DA SEMANA
O sorriso de Sade

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

Tudo o que Sade quer é dizer a verdade. Contra toda convenção e contrato social. A verdade nua e crua, que só se vê quando se encara o vazio do nada.
"Só sacrificando tudo à volúpia, o infeliz indivíduo denominado homem e jogado a contragosto neste triste universo conseguirá semear algumas rosas sobre os espinhos da vida", escreve o marquês no seu "A Filosofia na Alcova", que sai agora em nova edição, com tradução, posfácio e notas de Augusto Contador Borges.
Se a vida não faz o menor sentido, ou melhor, se é impossível ao homem entender o sentido da vida, só lhe resta se entregar aos desígnios da natureza, aos seus instintos mais puros e animais, ao desejo e ao prazer. Mass se o princípio sadiano é do desejo e do prazer, como é possível que os homens tenham acabado preferindo as convenções e a religião a essa filosofia libertina, aliás tão perseguida, punida e censurada (em 1957, o editor Jean-Jacques Pauvert ainda era condenado, em Paris, por publicar os textos de Sade) pelo perigo de sua divulgação?
É que a verdade que essa obra se propõe a revelar é tão devastadora de todos os artifícios (Deus, o amor, as virtudes) que os homens inventam para sobreviver diante do vazio absoluto, que sua leitura ameaça semear o próprio aniquilamento do homem. A radicalidade de seu niilismo é tanta que a própria concepção de mundo proposta por essa filosofia trágica já é em si uma impossibilidade. Espelha a impossibilidade do mundo escondida sob a superfície das convenções sociais, morais e religiosas.
Em "A Filosofia na Alcova", um texto "light" se comparado à obra-prima que é "Os Cento e Vinte Dias de Sodoma", um grupo de libertinos se reúne para iniciar -na teoria e na prática- uma virgem nos princípios do desejo, do prazer e da crueldade.
Fascinado pelo teatro (encenou peças com os detentos do hospício de Charenton, onde acabou internado), Sade expõe sua filosofia em diálogos. Depois de ouvir o libertino Dolmancé explicar para sua pupila Eugénie a legitimidade do assassinato, a senhora de Saint-Ange, auxiliar do mestre na educação da menina, se espanta: "Sabeis de uma coisa, Dolmancé, que por meio deste sistema acabareis provando que a extinção total da raça humana seria um benefício para a natureza?" E ao libertino só cabe responder: "E alguém duvida, senhora?".
Aristocrata devasso na Revolução Francesa, passando boa parte da vida encarcerado, Sade se proclama herdeiro da razão enciclopedista, mas a radicaliza a ponto de aniquilar qualquer veleidade de conhecimento ou ilustração (o único conhecimento possível ao homem é o do seu próprio desejo individual e despótico, em detrimento do outro, que é reduzido a objeto do prazer).
Sade desafia a razão a dar um passo além e encarar a verdade que tem diante de si: "Se todos os indivíduos fossem eternos, não se tornaria impossível à natureza criar novos seres? Se a eternidade dos seres é impossível à natureza, sua destruição torna-se portanto uma de suas leis (...) e o homem que destrói seu semelhante é para a natureza aquilo que é para ele a peste ou a fome, igualmente enviadas pela sua mão".
Para quem busca o sentido da vida, essa nova religião do prazer e do desejo absolutos grita uma única resposta circular e desoladora: "Nós estamos aqui porque seria impossível que aqui não estivéssemos". Só resta o desejo. E o sujeito é dissolvido pelo desejo.
Numa entrevista de 68, Michel Foucault comparava a obra de Sade ao paradoxo lógico do "sorriso do gato sem o gato" em "Alice no País das Maravilhas", de Lewis Carroll: "Trata-se de um quebra-cabeças de todas as possibilidades sexuais, sem que as próprias pessoas sejam outra coisa além de elementos nessas combinações e cálculos. (...) O homem não participa disso. O que se expõe e se exprime por si só é a linguagem e a sexualidade. Linguagem sem ninguém falando;sexualidade anônima sem um sujeito que dela tire prazer." Uma "obra sem autor".
Contador Borges explica o mesmo paradoxo de outra forma em seu posfácio: "Mas se a "mais-revolução" proposta por Sade é impraticável (daí sua utopia), sua palavra permanece como um exercício de lucidez sombria que não se pode descartar. Se esta literatura está condenada ao impossível por se divorciar do real, ela se vinga no espaço de sua realidade absurda criando um mundo às avessas, como um espelho de imagens retorcidas em que, no entanto, o homem contrafeito parece belo, o gozo triunfa e a felicidade é possível".
A obra de Sade recria o próprio espaço da literatura: esse lugar onde se desenha a verdade mais insustentável, o contrário da realidade possível. Um mundo da imaginação, onde o sorriso do gato pode existir sem o gato.


Avaliação:


Livro: A Filosofia na Alcova Autor: Marquês de Sade Tradução: Augusto Contador Borges Lançamento: Iluminuras Quanto: R$ 23 (255 págs.)


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