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São Paulo, sábado, 05 de julho de 2003

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A caminho da Festa Literária de Parati, Don DeLillo discute o caos nos EUA em "Cosmópolis"

Um dia de fúria

Associated Press/Richard Drew
Congestionamento em Nova York, um dos cenários de "Cosmópolis", de Don DeLillo


CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Dezenas de 11 de setembros anteriores ao 11 de Setembro maiúsculo o escritor Don DeLillo, 67, já havia traçado o mapa do terror que tomou conta da América.
Indiscutivelmente um dos principais romancistas dos Estados Unidos nos últimos 50 anos, este nova-iorquino do Bronx soube farejar como ninguém cada um dos surrealismos subjacentes ao curso da história contemporânea.
Como escreve em "Ruído Branco" (1985), um de seus grandes romances, "quanto maior o avanço tecnológico, mais primitivo o medo". Escritor por excelência das teorias da conspiração e da paranóia iniciadas com a Guerra Fria, DeLillo toca novamente nos nervos da sociedade norte-americana com seu livro mais recente.
"Cosmópolis" (Companhia das Letras), que o bastante recluso romancista vem lançar no Brasil, como convidado do Festa Literária Internacional de Parati, é a crônica de um dia na vida de um milionário de Nova York.
Durante todas as 198 páginas do livro, seguimos o poderoso Eric Packer cruzando Manhattan com sua limusine, para cortar o cabelo.
Em uma cidade entupida por congestionamentos, protestos antiglobalização e atentados (o livro é anterior a 11 de Setembro), Packer reencarna uma espécie moderna de Ícaro, o mito grego que, ao voar próximo ao Sol, teve suas asas derretidas e caiu. Seu "dia de fúria" é também sua queda -e o tombo de uma era, como DeLillo conta, em entrevista à Folha.

Na conversa, o escritor disse que enxerga "Cosmópolis", seu 13º romance, como "um livro sobre o tempo, o tempo acelerado". Disse que só vai explicar por que aos brasileiros, no desacelerado tempo de Parati, onde ele faz palestra no próximo 3 de agosto. Leia a seguir trechos da entrevista.

Folha - "Cosmópolis" lembra uma longa sequência cinematográfica, sem cortes. O livro foi pensado como um filme ou mais como um "Ulisses", de James Joyce, o monumental romance de um dia na vida de um ser comum?
Don DeLillo -
Acho que é possível dizer que é um "Ulisses" em velocidade distorcida. Queria uma estrutura bem rápida para o romance, com personagens que aparecessem e desaparecessem. Claro que há uma realidade exagerada, mas é porque Eric vive toda a sua vida em um só dia.
E quis que esse dia fosse o último de uma era, aquele intervalo entre o fim da Guerra Fria e o começo do atual período terrorista. Foram os anos 90, a década do dinheiro, quando as pessoas viravam noites olhando suas finanças crescerem no computador.

Folha - Por isso o sr. fala que "estávamos todos vivendo no futuro"? DeLillo - Por pelo menos uns dez anos sim, até que isso acabou. O livro é ambientado em abril de 2000, que é quando tudo virou e vimos que não estávamos no futuro. Primeiro foi a falha do mercado global, depois o 11 de Setembro. Isso nos colocou em outro período, que ainda não entendi.

Folha - No romance o sr. descreve uma série de protestos antiglobalização no coração de Manhattan. O sr. acha que essas manifestações são importantes na definição de como pensamos hoje?
DeLillo -
Muito importantes. São uma lembrança para todos nós de que quando nos movemos em direção ao futuro existem coisas e pessoas por trás. Uma das personagens fala isso. Chama de uma fenda da racionalidade humana o fato de que fingimos esquecer que vamos causar muito sofrimento ao criar enormes possibilidades de investimento para alguns e nenhuma para a massa. Esse é o valor dos protestos, lembrar disso.

Folha - O sr. terminou este livro antes de 11 de Setembro. Como o sr. acha que as catástrofes dessa data vão alterar sua literatura?
DeLillo -
Não estou certo se eu confio em ficção escrita em resposta direta a um evento. Eu demorei 30 anos para descobrir que podia ser capaz de escrever um romance sobre o assassinato de Kennedy. Não sei como os romancistas vão ser afetados por 11 de Setembro. Sei que isso já fez com que artistas de outras disciplinas tivessem urgência em se expressarem. Mas o romance é, por natureza, uma forma de germinação lenta, que tende a resistir em ser apressado para existir.

Folha - Logo depois do desmoronamento do World Trade Center toda a mídia mundial procurou o sr. por ter escrito por muitos anos sobre ataques terroristas e até pela coincidência da capa de seu romance "Submundo", de 1997, com foto de um pássaro voando para as Torres Gêmeas. Como o sr. detectou tão cedo o terror de hoje em dia?
DeLillo -
Há uns 25 anos eu morei na Grécia e foi um período fascinante e muito perigoso. Havia então um forte sentimento de terror naquela área. Até sequestros de aviões eram comuns. Foi aí que comecei a pensar no terror. Depois veio Beirute, no início dos 80. Quando o terror começou a ficar óbvio nos EUA acharam que eu era um adivinho, mas só enxergava o que já estava aqui.

Folha - O sr. é sempre descrito como o principal autor da paranóia americana. Como o sr. lida com o título de "Mr. Paranóia"?
DeLillo -
Não acho que seja verdade. Minha única paranóia é de responder sobre paranóia (risos).
Esse rótulo ganhou força em especial quando escrevi "Libra", romance em que tive de falar sobre paranóia, por ter ela nos cercado durante os anos 60 e 70. Havia uma paranóia muito poderosa na cultura americana, o que entrou em meu trabalho. Com o tempo, acho que fui deixando ela de lado.

Folha - Outra característica que sempre lhe atribuem é de ser um eremita, alguém que não fala com a imprensa. Está falando agora. O sr. deixou de ser totalmente esquivo à mídia graças ao que escreveu sobre seu personagem Bill Gray: "Quando um escritor não mostra seu rosto ele se torna um sintoma local da famosa relutância em aparecer manifestada por Deus"?
DeLillo -
O fato é que no princípio ninguém queria falar comigo (risos). Acho que só depois que "Libra" foi publicado, já nos anos 80, concordei em falar com jornalistas. Por ser sobre um momento crucial da história americana (o assassinato de Kennedy) achei que tinha a obrigação de responder sobre o meu jeito de lidar com o tema. Depois, passei a falar com jornalistas ocasionalmente.


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