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São Paulo, sábado, 05 de julho de 2003

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"COSMÓPOLIS"

Quando a vida escapa como um espectro

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

"Um espectro ronda o mundo..." Arremedando a frase inicial do "Manifesto Comunista", de Marx e Engels, os militantes antiglobalização que tomam conta da Times Square, em Nova York, também inscrevem no painel eletrônico da Nasdaq a seguinte continuação: "... O espectro do capitalismo".
A violenta manifestação, que ocupa o centro de "Cosmópolis", inclui até uma auto-imolação pelo fogo à moda hindu. Por ela passa o megainvestidor Eric Packer, que saíra de casa disposto a cortar o cabelo e a compreender o comportamento do iene. Em sua feérica jornada de 24 horas pelas ruas de Nova York, a bordo de uma superlimusine que lhe serve de escritório, Eric consegue atingir, ao menos parcialmente, os dois objetivos. Mas o custo será alto.
Se Nova York é a capital do mundo globalizado, o investidor é um de seus titãs. Inteligente, obsessivo, cruento, ele é comparado a um homem primitivo. A sequência lógica dos negócios é o assassinato, dizem. Mas o culto à tecnologia e aos dados impele Eric a procurar padrões harmoniosos sob a barbárie mercantil. Contrariando as previsões, porém, o iene, contra cuja cotação ele especulara maciçamente, em vez de cair, não pára de subir.
A resposta para o enigma estaria dentro do personagem. Ele descobre, num check-up médico, que sua próstata é assimétrica. Em vez de procurar a simetria dos eventos, deveria ter-se preocupado em sondar a assimetria essencial que marca a vida e a si próprio. Mas a resposta chega tarde. Eric é o bode expiatório do capitalismo. Ele precisa ser imolado para que o sistema volte a equilibrar-se. Sua arrogância cega provoca-lhe a ruína nesta história ao mesmo tempo cômica e trágica -e, como nas tragédias gregas, circunscrita a 24 horas.
O leitor não deve buscar aqui coerência psicológica ou verossimilhança. Os personagens agem segundo uma vontade alheia e superior a eles, a qual atende a um esquema de narração onde tudo se encaixa. Com desenvolvimento e concatenação rigorosos, os episódios moldam-se à mesma lógica que, no plano fabular, causa a queda de Eric: a simetria. "Cosmópolis", como narrativa, é impecável e simétrica, sem fios soltos. Por isso mesmo, a vida, cujo significado tanto confunde o protagonista, escapa como um espectro por entre as páginas.


Cosmópolis
   
Autor: Don DeLillo Tradutor: Paulo Henriques Britto Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 30 (198 págs.)



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