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São Paulo, sábado, 05 de julho de 2003

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RODAPÉ

Exílio e luto se encontram na poesia de Tamara Kamenszain

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

O último número da revista "Inimigo Rumor" traz encartado um pequeno volume de poemas intitulado "O Gueto", da argentina Tamara Kamenszain. Trata-se de uma preciosidade, um livro que nos convida a várias releituras, nas quais encontramos simultaneamente memória familiar, indignação política, conhecimento gnóstico do mundo e um lirismo projetado em estilhaços da história pessoal da escritora.
Kamenszain pertence à mesma geração do argentino Néstor Perlongher (que passou boa parte da vida no Brasil), ambos associados ao neobarroco. "O Gueto", no entanto, está impregnado por um hermetismo judaico distante da exuberância imagética desse movimento latino-americano.
A tradição judaica está presente tanto no título quanto nos nomes dos poemas ("Solidéu", "Bar Mitzvá", "Anne Frank" etc.). Mas o gueto de Kamenszain não é apenas o espaço de segregação de um povo, assim como o exílio do livro não é só a diáspora bíblica. Afinal, a história dos judeus é tanto um enraizamento que os isola quanto uma busca de transcendência que inclui todos os não-judeus.
E é esse vaivém entre culturas que surge desde o início: "O duplo de mim, cristão/ a metade de meu duplo, judia/ se nascemos perdemos algo/ por via dolorosa/ e se não nascemos juntos/ perdemos tudo", escreve Kamenszain em "Prepúcio", no qual o ritual da circuncisão remete a um outro sacrifício, cuja sombria menção fecha o poema: "e de que me serve a parte do macho/ se não puder salvar do extermínio/ esse hímen que vela/ todas as rupturas".
Estão ali todos os elementos que percorrem "O Gueto": o processo de assimilação ("reverter da direita para a esquerda/ a ordem das letras, "assimilar-se",/ traduzir como ladino/ a língua materna"), a singularidade da experiência feminina, o trauma da história gravado na pele sob a forma de "números do antebraço".
É do encontro entre o mais especificamente judaico e o mais profundamente pessoal que ela desentranha uma poesia que se traduz em impossibilidade da expressão, em um drama da representação cuja sintaxe fraturada dialoga de perto com a poética do indizível de Paul Celan (citado em três epígrafes de "O Gueto").
O livro é um trabalho de luto pelo pai, cuja morte (anunciada já na dedicatória: "Em teu sobrenome instalo meu gueto") provoca uma dor incompartilhável, tornando incompreensível até mesmo a oração aos mortos, o "Kaddish" que dá nome a um dos poemas: "Sonho que ainda o tenho./ Não rezem em meus ouvidos/ pois vão me acordar/.../ Dez homens o invocam na terça-feira/ num espaço sem ele/ seu idioma/ soa estrangeiro".
O estranhamento do próprio idioma, contudo, reitera um tema pertencente à tradição paterna. Pois o verso "O que é um pai?", insistentemente repetido a cada estrofe, se descola da experiência pessoal e passa a ser uma espécie de hino dirigido a esse céu habitado por um Deus que a religião judaica proíbe de representar e que a gnose dos cabalistas procurava na imanência da linguagem humana, fragmento exilado do Verbo original.
Mas se a dor impronunciável da perda e a perda da língua de Deus se unificam por meio da poesia, essas ressonâncias religiosas também podem se traduzir em sarcasmo em relação ao silêncio divino diante das atrocidades da história: "Deus nos arquivará distintos/ em seu livro dos parentescos/ no velho eu você no novo/ dois testamentos na fossa comum/ e depois/ que nos identifiquem" escreve Kamenszain em "Gentios", referindo-se ao Deus judaico e ao Deus cristão, às fossas dos campos de concentração nazistas e às valas comuns dos desaparecidos políticos da Argentina.
E as ironias, finalmente, atingem a própria poesia quando Tamara Kamenszain abandona temporariamente o seu gueto literário para empreender, nos dois últimos poemas do livro, uma "diáspora subida ao Corcovado", em "lúmpens peregrinações" por um Rio de Janeiro de precipícios sociais e transe musical. Forma suprema do exílio: uma judia argentina fazendo turismo antropofágico nos trópicos.


O Gueto
     Autor: Tamara Kamenszain Tradução: Carlito Azevedo e Paloma Vidal Editora: Cosac & Naify Quanto: R$ 25 (64 págs.); volume vem encartado com a revista "Inimigo Rumor" (250 págs.)



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