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RODAPÉ
Exílio e luto se encontram na poesia de Tamara Kamenszain
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
O último número da revista
"Inimigo Rumor" traz encartado um pequeno volume de
poemas intitulado "O Gueto", da
argentina Tamara Kamenszain.
Trata-se de uma preciosidade, um
livro que nos convida a várias releituras, nas quais encontramos
simultaneamente memória familiar, indignação política, conhecimento gnóstico do mundo e um
lirismo projetado em estilhaços
da história pessoal da escritora.
Kamenszain pertence à mesma
geração do argentino Néstor Perlongher (que passou boa parte da
vida no Brasil), ambos associados
ao neobarroco. "O Gueto", no entanto, está impregnado por um
hermetismo judaico distante da
exuberância imagética desse movimento latino-americano.
A tradição judaica está presente
tanto no título quanto nos nomes
dos poemas ("Solidéu", "Bar
Mitzvá", "Anne Frank" etc.). Mas
o gueto de Kamenszain não é apenas o espaço de segregação de um
povo, assim como o exílio do livro
não é só a diáspora bíblica. Afinal,
a história dos judeus é tanto um
enraizamento que os isola quanto
uma busca de transcendência que
inclui todos os não-judeus.
E é esse vaivém entre culturas
que surge desde o início: "O duplo
de mim, cristão/ a metade de meu
duplo, judia/ se nascemos perdemos algo/ por via dolorosa/ e se
não nascemos juntos/ perdemos
tudo", escreve Kamenszain em
"Prepúcio", no qual o ritual da
circuncisão remete a um outro sacrifício, cuja sombria menção fecha o poema: "e de que me serve a
parte do macho/ se não puder salvar do extermínio/ esse hímen
que vela/ todas as rupturas".
Estão ali todos os elementos que
percorrem "O Gueto": o processo
de assimilação ("reverter da direita para a esquerda/ a ordem das
letras, "assimilar-se",/ traduzir como ladino/ a língua materna"), a
singularidade da experiência feminina, o trauma da história gravado na pele sob a forma de "números do antebraço".
É do encontro entre o mais especificamente judaico e o mais
profundamente pessoal que ela
desentranha uma poesia que se
traduz em impossibilidade da expressão, em um drama da representação cuja sintaxe fraturada
dialoga de perto com a poética do
indizível de Paul Celan (citado em
três epígrafes de "O Gueto").
O livro é um trabalho de luto pelo pai, cuja morte (anunciada já
na dedicatória: "Em teu sobrenome instalo meu gueto") provoca
uma dor incompartilhável, tornando incompreensível até mesmo a oração aos mortos, o "Kaddish" que dá nome a um dos poemas: "Sonho que ainda o tenho./
Não rezem em meus ouvidos/
pois vão me acordar/.../ Dez homens o invocam na terça-feira/
num espaço sem ele/ seu idioma/
soa estrangeiro".
O estranhamento do próprio
idioma, contudo, reitera um tema
pertencente à tradição paterna.
Pois o verso "O que é um pai?", insistentemente repetido a cada estrofe, se descola da experiência
pessoal e passa a ser uma espécie
de hino dirigido a esse céu habitado por um Deus que a religião judaica proíbe de representar e que
a gnose dos cabalistas procurava
na imanência da linguagem humana, fragmento exilado do Verbo original.
Mas se a dor impronunciável da
perda e a perda da língua de Deus
se unificam por meio da poesia,
essas ressonâncias religiosas também podem se traduzir em sarcasmo em relação ao silêncio divino diante das atrocidades da história: "Deus nos arquivará distintos/ em seu livro dos parentescos/
no velho eu você no novo/ dois
testamentos na fossa comum/ e
depois/ que nos identifiquem" escreve Kamenszain em "Gentios",
referindo-se ao Deus judaico e ao
Deus cristão, às fossas dos campos de concentração nazistas e às
valas comuns dos desaparecidos
políticos da Argentina.
E as ironias, finalmente, atingem a própria poesia quando Tamara Kamenszain abandona
temporariamente o seu gueto literário para empreender, nos dois
últimos poemas do livro, uma
"diáspora subida ao Corcovado",
em "lúmpens peregrinações" por
um Rio de Janeiro de precipícios
sociais e transe musical. Forma
suprema do exílio: uma judia argentina fazendo turismo antropofágico nos trópicos.
O Gueto
Autor: Tamara Kamenszain
Tradução: Carlito Azevedo e Paloma
Vidal
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 25 (64 págs.); volume vem
encartado com a revista "Inimigo
Rumor" (250 págs.)
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