|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
crítica
Sedaris é boa distração, mas falta ironia
GUSTAVO PIQUEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
O menino que sonha
em cantar como Billie Holiday, para decepção do professor de guitarra. O anfitrião buscando,
sem êxito, evitar roteiros clichês de turismo em Paris e
Nova York. O professor de
redação criativa em sucessivas falcatruas para enrolar
seus alunos.
Todas as 27 crônicas que
compõem "Eu Falar Bonito
um Dia" são narrativas bem
escritas, sem afetações de
virtuose. Divertidas, trazem
um humor inteligente. Por
vezes, até memorável. Como
quando Sedaris discorre sobre culinária contemporânea ("se cozinhar é uma arte,
acho que estamos na fase do
dadá"), ou nas incursões do
artista conceitual que compõe a crônica "Doze Momentos na Vida do Artista".
Verdade que a parte dois
do livro, dedicada aos percalços do narrador na França, é
um pouco repetitiva. Verdade também que, às vezes, Sedaris se rende ao truque fácil
de incrementar demais seu
cotidiano. Não basta trabalhar numa empresa de mudanças. É preciso que sua
equipe seja formada por um
comunista, um assassino e
um esquizofrênico. Senão o
leitor cansa, né?
A comparação com Woody
Allen, tão freqüente por conta do uso de si próprio como
objeto de sarcasmo (e também para abocanhar os muitos fãs do nova-iorquino,
imagino) é justa. Desde que,
claro, descartemos os mais
ambiciosos (e melhores) filmes deste último. Por quê?
Porque a tão propagada "ironia arrasadora" da obra de
Sedaris, de fato, não existe.
Não, não existe. Caso contrário, como explicar a constrangedora visão romântica
de pobres pescadores em
"Engenharia Genética"? Ou
o paralelo reducionista entre
a infância "medíocre" do
narrador na Carolina do
Norte e as aventuras africanas de seu namorado, filho
de diplomata, em "Recordando minha Infância no
Continente da África"?
A própria crítica à culinária contemporânea, elogiada
há pouco, acaba por restringir sua conclusão ao rasteiro
vem-tão-pouco-no-prato-que-eu-preciso-de-um-sanduíche-depois. Sem falar,
claro, na crônica que começa
com "lá no vaso, estava o cocô mais descomunal que eu
já vira na vida". Até onde sei,
Woody Allen não dirigiu
"Quem Vai Ficar com
Mary?". Dirigiu?
Se Proust estava certo (em
geral está) e "todo leitor,
quando lê, é leitor de si mesmo", um livro que se apresente como de ironia arrasadora deveria levar a uma das duas inevitáveis reações: na
pior (e mais freqüente) das
hipóteses, a tradicional negação. "Que autor arrogante.
Não sou nada disso." Na melhor, "é, pensando bem, sou
um tanto ridículo". Uma das
duas. Nunca a "é, pensando
bem, o americano do meio-oeste é um tanto ridículo".
Nunca.
Sedaris bate bem? Bastante bem. Com inegável precisão, graça e estilo. Só não se
engane: bate, salvo raras exceções, em cachorro morto.
Morto, morto. Seu humor é
confortável. Escarnece do
que já é considerado ridículo
pelo senso comum.
Mas não pense que quero
fazê-lo desistir. Não, não.
Se você busca, num livro,
"essa coisa estúpida e sempre eficaz que se chama distrair", como afirmava um antigo autor cheio de -este sim- arrasadora ironia, "Eu
Falar Bonito um Dia" é ótima pedida.
GUSTAVO PIQUEIRA é autor do "Manual do
Paulistano Moderno e Descolado" (WMF/
Martins Fontes) e "São Paulo, Cidade Limpa" (Rex Livros), entre outros
EU FALAR BONITO UM DIA
Autor: David Sedaris
Tradução: Bruno Gomide
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 43 (248 págs.)
Avaliação: bom
Texto Anterior: Trecho Próximo Texto: Crítica/"O Pedante na Cozinha": Barnes celebra amadorismo culinário Índice
|