São Paulo, Segunda-feira, 05 de Julho de 1999
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FERNANDO GABEIRA
A corrosão do caráter pelo trabalho

Depois de cinco anos, férias. O governo quer uma trégua. Mas o que fazer das quatro semanas livres? Há tantas possibilidades e, ao mesmo tempo, o Rio sob o sol do inverno é de uma beleza insuperável. "Vagabundar." Aqui, usamos o verbo pela metade. Bundar, simplesmente. Se quiser uma versão mais oficial: procurar um novo "universal concreto" nas esquinas de Copacabana.
Às vezes, penso em trabalhar. Pegar duas câmeras, alguns rolos de filmes, um bom caderno de notas e visitar a Iugoslávia. Gosto desse oficio, mais ainda quando leio Robert Fisk, repórter do "Independent", que desde a Guerra do Golfo é para mim uma referência, não só de como trabalhar em campo minado, mas também de como competir em qualidade com a TV. O relato que ele faz da parcialidade da mídia ocidental deve ser levado em conta.
Esse ofício de repórter é bom porque sempre se começa de novo. Aliás, esse é um dos problemas que Richard Sennett vê no trabalho moderno. Em quase todas as áreas é sempre necessário recomeçar. Não se pode formular um projeto estável e de longo prazo em empresas que estão sempre em mudança.
A carga de Sennett, que supera as críticas mais emocionais ao capitalismo de hoje, se concentra também na superficialidade do trabalho de equipe, na indiferença que a facilidade da informática acaba interpondo entre você e sua profissão.
Alguns aspectos que ele destaca como negativos no trabalho contemporâneo, de certa forma sempre estiveram presentes no jornalismo. Não se trata apenas do eterno "começar de novo". Mas sempre houve reengenharias, com demissões, e os velhos tendem a ser vistos com desconfiança. Não só porque estariam superados, mas também porque têm mais capacidade de criticar, por deterem uma experiência mais extensa, por conhecerem, como diz a música de Peninha, o antes, o agora e o depois. Capacidade de crítica que rapidamente é interpretada como resistência a mudanças.
As reengenharias que sempre produzem demissões não tinham esse nome entre nós. Inventamos um outro mais adequado: passaralho. Quando essa nova espécie voadora abria as asas sobre nós, rolavam cabeças.
Estatisticamente, os jornalistas talvez sejam mais ansiosos do que outros profissionais. Talvez sintam de forma mais aguda o que se chama de dificuldade de construir uma narrativa coerente diante das mudanças rápidas e da constante fragmentação.
Mas a verdade é que alguns acabam se acostumando com os fragmentos e aprendem a viver como artefatos pós-modernos, descritos por Salman Rushdie como "um edifício instável que construímos com raspas, dogmas, mágoas de infância, artigos de jornais, observações casuais, velhos filmes, pessoas odiadas, pessoas amadas".
Nesse caso, não existe mais a narrativa com toda sua coerência, mas uma colagem, um apanhado de fatos acidentais.
Claro que no tempo da carreira linear as pessoas compunham um enredo mais articulado para suas vidas. Mas isso significa que não havia também corrosão do caráter? Que os grupos rivais não se digladiavam nas empresas? Que as dimensões emocional e familiar não eram subestimadas?
Sennett várias vezes afirma que não está sonhando com os bons e velhos tempos, que não tem nenhuma veleidade saudosista na sua crítica ao trabalho contemporâneo. Mas a verdade é que as únicas pessoas ajustadas ao novo processo ele encontrou em Davos, onde magnatas e banqueiros celebram, periodicamente, o novo capitalismo. Enfim, os raros vencedores, que não querem nem saber dos milhões de perdedores que o processo vai deixando pelo caminho.
Embora concorde com as principais críticas ao novo processo de trabalho, lembraria apenas que em todas as etapas do capitalismo houve corrosão do caráter. Sennett fez um inteligente e fundamentado inventário crítico. Mas deixou de lado as vantagens e o grau de liberdade, expressos em tempo livre, que emergiram com o fim da rigidez burocrática e da disciplina industrial.
Sua frase final é sintomática: "Um regime que não oferece aos seres humanos motivos para se ligarem uns aos outros não pode preservar sua legitimidade por muito tempo". Concordo de coração. Mas quantas vezes nas etapas anteriores do capitalismo não se afirmou também sua improbabilidade?
Richard Sennett seria mais bem analisado em confronto com Marcuse. O que ele vê como terrível -por exemplo, a indiferença pelo tipo de trabalho-, o velho filósofo alemão na década de 60 já apontava como um potencial construtivo, pois nele os trabalhadores são menos solidários com o sistema. Ao contrário dos imigrantes que o livro de Sennett de certa forma destaca positivamente: gente que trabalhava duro para fazer carreira e construir uma narrativa para suas vidas.
Isso posto, vamos inventar trabalhos nas férias.


"A Corrosão do Caráter", de Richard Sennett (Record, 204 págs., R$ 25)



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