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FERNANDO GABEIRA
A corrosão do caráter pelo trabalho
Depois de cinco anos, férias. O
governo quer uma trégua. Mas
o que fazer das quatro semanas
livres? Há tantas possibilidades
e, ao mesmo tempo, o Rio sob o
sol do inverno é de uma beleza
insuperável. "Vagabundar."
Aqui, usamos o verbo pela metade. Bundar, simplesmente. Se
quiser uma versão mais oficial:
procurar um novo "universal
concreto" nas esquinas de Copacabana.
Às vezes, penso em trabalhar.
Pegar duas câmeras, alguns rolos de filmes, um bom caderno
de notas e visitar a Iugoslávia.
Gosto desse oficio, mais ainda
quando leio Robert Fisk, repórter do "Independent", que desde a Guerra do Golfo é para
mim uma referência, não só de
como trabalhar em campo minado, mas também de como
competir em qualidade com a
TV. O relato que ele faz da parcialidade da mídia ocidental
deve ser levado em conta.
Esse ofício de repórter é bom
porque sempre se começa de
novo. Aliás, esse é um dos problemas que Richard Sennett vê
no trabalho moderno. Em quase todas as áreas é sempre necessário recomeçar. Não se pode formular um projeto estável
e de longo prazo em empresas
que estão sempre em mudança.
A carga de Sennett, que supera as críticas mais emocionais
ao capitalismo de hoje, se concentra também na superficialidade do trabalho de equipe, na
indiferença que a facilidade da
informática acaba interpondo
entre você e sua profissão.
Alguns aspectos que ele destaca como negativos no trabalho
contemporâneo, de certa forma
sempre estiveram presentes no
jornalismo. Não se trata apenas do eterno "começar de novo". Mas sempre houve reengenharias, com demissões, e os
velhos tendem a ser vistos com
desconfiança. Não só porque
estariam superados, mas também porque têm mais capacidade de criticar, por deterem
uma experiência mais extensa,
por conhecerem, como diz a
música de Peninha, o antes, o
agora e o depois. Capacidade
de crítica que rapidamente é
interpretada como resistência
a mudanças.
As reengenharias que sempre
produzem demissões não tinham esse nome entre nós. Inventamos um outro mais adequado: passaralho. Quando essa nova espécie voadora abria
as asas sobre nós, rolavam cabeças.
Estatisticamente, os jornalistas talvez sejam mais ansiosos
do que outros profissionais.
Talvez sintam de forma mais
aguda o que se chama de dificuldade de construir uma narrativa coerente diante das mudanças rápidas e da constante
fragmentação.
Mas a verdade é que alguns
acabam se acostumando com
os fragmentos e aprendem a viver como artefatos pós-modernos, descritos por Salman
Rushdie como "um edifício instável que construímos com raspas, dogmas, mágoas de infância, artigos de jornais, observações casuais, velhos filmes, pessoas odiadas, pessoas amadas".
Nesse caso, não existe mais a
narrativa com toda sua coerência, mas uma colagem, um
apanhado de fatos acidentais.
Claro que no tempo da carreira linear as pessoas compunham um enredo mais articulado para suas vidas. Mas isso
significa que não havia também corrosão do caráter? Que
os grupos rivais não se digladiavam nas empresas? Que as
dimensões emocional e familiar não eram subestimadas?
Sennett várias vezes afirma
que não está sonhando com os
bons e velhos tempos, que não
tem nenhuma veleidade saudosista na sua crítica ao trabalho contemporâneo. Mas a verdade é que as únicas pessoas
ajustadas ao novo processo ele
encontrou em Davos, onde
magnatas e banqueiros celebram, periodicamente, o novo
capitalismo. Enfim, os raros
vencedores, que não querem
nem saber dos milhões de perdedores que o processo vai deixando pelo caminho.
Embora concorde com as
principais críticas ao novo processo de trabalho, lembraria
apenas que em todas as etapas
do capitalismo houve corrosão
do caráter. Sennett fez um inteligente e fundamentado inventário crítico. Mas deixou de lado as vantagens e o grau de liberdade, expressos em tempo
livre, que emergiram com o fim
da rigidez burocrática e da disciplina industrial.
Sua frase final é sintomática:
"Um regime que não oferece
aos seres humanos motivos para se ligarem uns aos outros
não pode preservar sua legitimidade por muito tempo".
Concordo de coração. Mas
quantas vezes nas etapas anteriores do capitalismo não se
afirmou também sua improbabilidade?
Richard Sennett seria mais
bem analisado em confronto
com Marcuse. O que ele vê como terrível -por exemplo, a
indiferença pelo tipo de trabalho-, o velho filósofo alemão
na década de 60 já apontava
como um potencial construtivo, pois nele os trabalhadores
são menos solidários com o sistema. Ao contrário dos imigrantes que o livro de Sennett
de certa forma destaca positivamente: gente que trabalhava
duro para fazer carreira e construir uma narrativa para suas
vidas.
Isso posto, vamos inventar
trabalhos nas férias.
"A Corrosão do Caráter", de Richard Sennett (Record, 204 págs., R$ 25)
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