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CONTARDO CALLIGARIS
Campanhas para eleitores reprimidos e narcisistas
As campanhas eleitorais
são sempre um pouco humilhantes. O mais freqüente é que
elas apostem na idéia de que nós,
eleitores, seríamos burros e mal-informados. Mas podem também
apostar na idéia de que seríamos
reprimidos ou fundamentalmente narcisistas. Antes de ilustrar esses casos com exemplos, uma observação.
No dia em que um candidato
passar a nos tratar como gente
grande, acredito que ganhará votos, seja qual for seu plano.
Sonho que alguém apareça na
tela e diga: "Salvo exceções que
explicarei, meus concorrentes são
pessoas tão qualificadas e bem-intencionadas quanto eu. Temos
em comum a vontade de fazer o
que nos parece melhor; é claro,
dentro do possível, que sempre é
menor que o necessário. Somos
todos, é óbvio, animados por uma
ambição descomunal; sem isso,
não estaríamos aqui. Mas nosso
gosto pelo poder é corrigido pela
vontade de servir o interesse público.
Agora, temos diferenças, sobre
as quais, você, eleitor, deve se pronunciar.
É raro que as diferenças sejam
de fundo (ninguém, hoje, promove projetos revolucionários). Quase sempre, são questões de prioridade (maneiras divergentes de
decidir o que é mais urgente) ou
de meios (concepções conflitantes
de como chegar a resultados parecidos).
Pode ser que a propaganda eleitoral de meus sonhos nos mate de
tédio, à força de argumentações
sensatas. Mas ela teria suas vantagens.
Primeiro caso. Recentemente, a
campanha de José Serra (candidato que tenho em grande estima) achou bom publicar em seu
site na internet uma charge contra Marta Suplicy, intitulada:
"Dona Marta e seus dois maridos". A idéia era levantar nossa
indignação porque Marta visitou
umas obras em companhia de seu
ex-marido, o senador Eduardo
Suplicy, o qual apóia a campanha
de sua ex-mulher.
O texto queria que exclamássemos: "Hã! Marta quer a presença
de Eduardo porque ele é muito
amado em São Paulo!" (pois é,
deveria fazer o quê? Convidar
Fernandinho Beira-Mar? Não é
normal que um candidato peça o
apoio de quem tem a confiança
dos eleitores?). Subentendido: "Se
ela queria o apoio de Eduardo Suplicy, por que não continuou casada com ele, eh?" (quer dizer o
quê? Será que cada candidato deve casar ou, quem sabe, passar
noites de paixão com todas as figuras públicas que compartilham
suas idéias e apóiam sua campanha? É esta a idéia: nada de palanque sem casamento ou coisa
parecida?).
O fundo da mensagem proposta
é, obviamente, que a Marta se
saiu excessivamente bem; como
diz o ditado, ela conseguiu ficar
com o leite e com o queijo (com
seu novo casamento e, mesmo assim, com o apoio de Eduardo).
Imagine: não só ela se separa e
volta a casar, mas mantém com
seu ex-marido uma relação suficientemente amistosa para que o
ressentimento não impeça um engajamento comum.
Essa "constatação" deveria inspirar nosso desgosto e levar-nos a
votar alhures. Por quê? Fácil: porque é muita coisa, ou melhor, são
coisas que muitos querem e não
conseguem fazer. Mas pouco importam os detalhes; o que vale
nesse apelo um pouco escroto é
que somos chamados a votar contra quem "goza" demais.
Em geral, a birra inspirada pelos supostos "prazeres" dos outros
tem esta motivação: detestamos
os que alcançam o que nós não
nos permitimos porque temos raiva de nossas próprias limitações.
Em suma, a charge contra Marta
pedia que nosso voto fosse inspirado pela repressão que impomos
(ou que é imposta) a nossos desejos. Era um apelo aos eleitores reprimidos.
Outro caso, agora americano.
No dia posterior à convenção democrata, um provedor de internet
dos EUA pediu a seus assinantes
que se pronunciassem sobre algumas citações dos discursos da convenção do Partido Democrata. As
frases partidárias receberam, sistematicamente, 50% de votos a
favor e 50% contra. É claro, a sociedade americana é politicamente dividida ao meio; se os democratas gostavam, os republicanos não gostavam. Mas havia
uma citação (do discurso de Barack Obama) que dizia: "Não
existem uma América progressista e uma América conservadora,
existem os Estados Unidos da
América". Essa frase levou 87%
de aprovação.
Patriotismo genérico dos eleitores? Parece-me mais provável que
os eleitores estejam cansados de
serem contrapostos coletivamente. Talvez se lembrem do seguinte:
o que eles compartilham de mais
relevante não são as camisetas e
os chapéus dos partidos, mas o
barco no qual estão todos e para o
qual se trata de inventar a melhor
rota possível.
Ser democrata, republicano,
serrista, malufista ou "martista" é
uma maneira de abdicar de boa
parte de nossa subjetividade em
favor de uma identidade de grupo. É uma maneira de votar com
a paixão narcisista de ser sempre
igual a si mesmo e a alguns outros
que são iguais à gente.
Pois é, eu (e não devo ser o único) preferiria que as campanhas
me encorajassem a votar com
meus sonhos e meus desejos, não
com a raiva de minhas repressões
nem com o conforto duvidoso de
minhas identificações de grupo.
ccalligari@uol.com.br
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