|
Texto Anterior | Índice
COMENTÁRIO
Fotógrafo descobria delicadeza de gestos
EDER CHIODETTO
FREE-LANCE PARA A FOLHA
"Tirar fotos é prender a respiração quando todas as
faculdades convergem para a realidade fugaz. É organizar rigorosamente as formas visuais percebidas para expressar o seu significado. É pôr numa mesma linha
cabeça, olho e coração." Esta imbatível definição do ato fotográfico, feita pelo próprio Henri Cartier-Bresson, serve de ponto de
partida para entender a magnitude e a repercussão de sua obra em
todo o mundo.
De posse de uma Leica, a câmera que dotou os fotógrafos do poder da invisibilidade ao ter tamanho e peso diminuídos em relação aos equipamentos que existiam até então, Cartier-Bresson
encarnou um autêntico "flâneur",
personagem criado por Charles
Baudelaire, que tinha por gosto se
deixar seduzir pelos erráticos caminhos das ruas parisienses em
busca de histórias e imagens. De
imagens, não, como ele dizia: "A
foto em si não me interessa, mas,
sim, a reportagem, a comunicação entre o mundo e o homem comum. E há este instrumento maravilhoso, a câmera, que passa
despercebido. É uma dança!".
Cartier-Bresson fotografava
com o instinto de um caçador que
persegue obstinadamente sua
presa. Ele até se enveredou pelo
universo dos retratos e os fez bem,
mas seu grande diferencial era
um faro particular para capturar
flagrantes. Sua busca incansável
era por aquilo que ele conceituou
como o instante decisivo, o momento em que o universo em harmonia conspira a favor do artista.
Uma fração mínima de tempo
em que forma e conteúdo atingem o limite da expressão e se enquadram perfeitamente entre as
quatro linhas do retângulo da sua
câmera. Nas palavras dele:
"Para mim, o aparelho fotográfico é um caderno de notas, um
instrumento da intuição e da espontaneidade, senhor do instante
que em termos visuais pergunta e
responde a um só tempo. Para expressarmos o mundo temos de
nos sentir envolvidos com aquilo
que descobrimos no visor. Esta
atitude exige concentração, disciplina mental, sensibilidade e senso de equilíbrio geométrico. É pela grande economia de meios que
se chega à simplicidade de expressão".
Mais do que uma técnica apurada, o instante decisivo de Cartier-Bresson preconizava a paixão pelo prosaico e pela fugacidade da
vida. Sua investigação não buscava a obtenção de fotografias grandiosas, mas, sim, a descoberta da
beleza e da delicadeza dos pequenos gestos, como em "Rue Mouffetard, 1954", em que um garoto
dobra a esquina carregando duas
garrafas. Dessa forma ele abriu o
caminho para uma linhagem de
fotógrafos dito humanistas que
depois se reuniriam em torno da
mítica agência Magnum, fundada
por ele e Robert Capa, entre outros, em 1947.
Numa de suas raras entrevistas,
concedida para a também fotógrafa Sarah Moon, em 1947, Bresson disse que começou a fotografar em 1931, influenciado pelos
surrealistas ("Não pela pintura
deles, mas pela percepção do subconsciente") e parou no início dos
anos 70, após uma conversa com
o amigo e crítico de arte Teriade.
"Ele me dizia: "Volta, volta. Você
já disse tudo o que podia. Não deve se repetir. Você precisa se questionar. É uma atitude libertária"."
Com a câmera aposentada Bresson se abrigou no desenho e na
pintura. "Não tenho saudades. O
desenho é uma meditação, enquanto a foto é um tiro." A preferência pela meditação e pela reclusão era também uma forma de
fugir ao assédio: "A fama é horrível, horrível. Ficamos acorrentados", queixava-se.
Bresson morre no momento em
que a fotografia passa por uma
profunda transformação no
mundo todo. Com a disseminação das câmeras digitais portáteis,
celulares e palm tops que fotografam e a facilidade de circulação
das imagens via internet, uma nova linguagem está sendo elaborada sem que saibamos onde tudo
isso vai dar.
A visão de mundo de Bresson e
de seus pares, calcada na sensibilidade, na argúcia e no rigor estético parece não ser mais suficiente
para traduzir esses novos tempos.
A era da velocidade e da informação carrega a crença de que o instante decisivo ocorre o tempo todo e está on-line. Mera ilusão.
Cartier-Bresson será sempre o fio
da meada para se reencontrar
uma sensibilidade em extinção.
Texto Anterior: Repercussão Índice
|