São Paulo, quinta-feira, 05 de agosto de 2004

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COMENTÁRIO

Fotógrafo descobria delicadeza de gestos

EDER CHIODETTO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

"Tirar fotos é prender a respiração quando todas as faculdades convergem para a realidade fugaz. É organizar rigorosamente as formas visuais percebidas para expressar o seu significado. É pôr numa mesma linha cabeça, olho e coração." Esta imbatível definição do ato fotográfico, feita pelo próprio Henri Cartier-Bresson, serve de ponto de partida para entender a magnitude e a repercussão de sua obra em todo o mundo.
De posse de uma Leica, a câmera que dotou os fotógrafos do poder da invisibilidade ao ter tamanho e peso diminuídos em relação aos equipamentos que existiam até então, Cartier-Bresson encarnou um autêntico "flâneur", personagem criado por Charles Baudelaire, que tinha por gosto se deixar seduzir pelos erráticos caminhos das ruas parisienses em busca de histórias e imagens. De imagens, não, como ele dizia: "A foto em si não me interessa, mas, sim, a reportagem, a comunicação entre o mundo e o homem comum. E há este instrumento maravilhoso, a câmera, que passa despercebido. É uma dança!".
Cartier-Bresson fotografava com o instinto de um caçador que persegue obstinadamente sua presa. Ele até se enveredou pelo universo dos retratos e os fez bem, mas seu grande diferencial era um faro particular para capturar flagrantes. Sua busca incansável era por aquilo que ele conceituou como o instante decisivo, o momento em que o universo em harmonia conspira a favor do artista.
Uma fração mínima de tempo em que forma e conteúdo atingem o limite da expressão e se enquadram perfeitamente entre as quatro linhas do retângulo da sua câmera. Nas palavras dele:
"Para mim, o aparelho fotográfico é um caderno de notas, um instrumento da intuição e da espontaneidade, senhor do instante que em termos visuais pergunta e responde a um só tempo. Para expressarmos o mundo temos de nos sentir envolvidos com aquilo que descobrimos no visor. Esta atitude exige concentração, disciplina mental, sensibilidade e senso de equilíbrio geométrico. É pela grande economia de meios que se chega à simplicidade de expressão".
Mais do que uma técnica apurada, o instante decisivo de Cartier-Bresson preconizava a paixão pelo prosaico e pela fugacidade da vida. Sua investigação não buscava a obtenção de fotografias grandiosas, mas, sim, a descoberta da beleza e da delicadeza dos pequenos gestos, como em "Rue Mouffetard, 1954", em que um garoto dobra a esquina carregando duas garrafas. Dessa forma ele abriu o caminho para uma linhagem de fotógrafos dito humanistas que depois se reuniriam em torno da mítica agência Magnum, fundada por ele e Robert Capa, entre outros, em 1947.
Numa de suas raras entrevistas, concedida para a também fotógrafa Sarah Moon, em 1947, Bresson disse que começou a fotografar em 1931, influenciado pelos surrealistas ("Não pela pintura deles, mas pela percepção do subconsciente") e parou no início dos anos 70, após uma conversa com o amigo e crítico de arte Teriade. "Ele me dizia: "Volta, volta. Você já disse tudo o que podia. Não deve se repetir. Você precisa se questionar. É uma atitude libertária"."
Com a câmera aposentada Bresson se abrigou no desenho e na pintura. "Não tenho saudades. O desenho é uma meditação, enquanto a foto é um tiro." A preferência pela meditação e pela reclusão era também uma forma de fugir ao assédio: "A fama é horrível, horrível. Ficamos acorrentados", queixava-se.
Bresson morre no momento em que a fotografia passa por uma profunda transformação no mundo todo. Com a disseminação das câmeras digitais portáteis, celulares e palm tops que fotografam e a facilidade de circulação das imagens via internet, uma nova linguagem está sendo elaborada sem que saibamos onde tudo isso vai dar.
A visão de mundo de Bresson e de seus pares, calcada na sensibilidade, na argúcia e no rigor estético parece não ser mais suficiente para traduzir esses novos tempos. A era da velocidade e da informação carrega a crença de que o instante decisivo ocorre o tempo todo e está on-line. Mera ilusão. Cartier-Bresson será sempre o fio da meada para se reencontrar uma sensibilidade em extinção.


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