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FERREIRA GULLAR
Uma viagem inesquecível
Após o jantar, as luzes do avião se apagaram e iniciou-se a mais longa noite de minha vida
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O AVIÃO é o mais seguro dos
meios de transportes, dizem,
e eu admito, embora prefira
viajar de automóvel.
É um problema psicológico, sem
dúvida, mas que posso fazer? Quando o carro balança ou estremece,
não me aflijo, pois sei que, estando
no chão, não vai cair; mas, no avião, a
10 mil metros de altura, entro em
pânico. Sei que não cai, mas não
adianta sabê-lo -entro em pânico
assim mesmo.
Fazia quase três anos que não viajava de avião, negando-me a aceitar
qualquer convite que me obrigasse a
isso. E tudo por causa de dois sustos
seguidos, na ponte-aérea Rio-São
Paulo. O primeiro deles, vinha para
o Rio de noite e, pouco antes de chegarmos, o avião deu uma balançada
tão brusca que fez gente gritar assustada; a impressão era de que íamos nos precipitar no chão, mas não
aconteceu nada; quando o avião
pousou, os passageiros bateram palmas, não sei se ao comandante ou à
providência divina. Mas, recuperado do susto, desci as escadas do
avião e senti pena do pessoal que,
em fila, esperava para embarcar.
Aliviava-me pensar que, só dali a
um mês, teria que repetir aquela
viagem.
Sucede que, para os assustados,
um mês passa rápido, e assim foi
que, quando dei por mim, estava de
novo voando para São Paulo. Com 15
minutos de vôo, o comandante informou que o aeroporto de Congonhas estava fechado e assim me vi
rodando sob a tempestade durante
20 minutos antes de conseguir pousar. Salvo do desastre, prometi a
mim mesmo que nunca mais poria o
pé dentro de um avião. Desde aquele
dia, todas as vezes que viajei para
São Paulo fui de carro e me dei bem.
O chofer apanhava-me à porta de casa e me deixava à porta do hotel.
Além de viajar com a alma em paz,
não tinha que enfrentar as filas e
atrasos nos aeroportos. Cinco horas
e meia de carro permitiam-me ler e
escrever. Até um livro de poemas
para crianças escrevi numa dessas
viagens.
Anos se passaram, esqueci aqueles
sustos e, talvez por isso, aceitei o
convite para ir à Espanha fazer conferências e leituras de poemas. Isso
foi bem antes da tragédia de Congonhas. Cláudia, que gosta de viajar e
não tem medo de avião, achou ótimo
e, assim, irresponsavelmente, deixei-me encantar pela possibilidade
de rever Madri e, finalmente, conhecer Sevilha e Santiago de Compostela. Além do mais, ficaríamos na Residencia de los Estudiantes, onde residiram García Lorca, Juan Ramón Jiménez e Rafael Alberti. Embalado
em sonhos, vi aproximar-se a data
em que voaria para terras da Espanha. É certo que, em alguns momentos, acudia-me a pergunta: "E você
vai estar dentro de um avião durante
dez horas ininterruptas?". Estremecia de medo, mas desviava o pensamento, já que, àquela altura, não poderia voltar atrás.
E foi assim que, certa tarde de
maio, Cláudia e eu, arrastando maletas, chegamos ao Aeroporto Internacional Tom Jobim: embarcaríamos às 21h30. Logo nos deparamos
com uma fila enorme de passageiros
que tomariam o mesmo avião. Sem
muita demora, o alto-falante anunciou que o nosso vôo para Madri
atrasaria cerca de uma hora.
Começou a encrenca, disse a mim
mesmo, e seguimos para o restaurante a fim de gastarmos o tempo.
Estava lotado mas, por sorte, logo
conseguimos sentar. E ali ficamos, à
espera da chamada para o embarque, cujo atraso já se aproximava das
duas horas. "Para que me meti nisto?", me perguntava eu, já dentro do
avião, que não se movia. Finalmente, uma voz informou, em espanhol,
que deveríamos esperar mais uma
hora, aguardando autorização das
autoridades brasileiras.
Afinal, decolamos. Meu relógio
marcava meia-noite e meia, três horas de atraso. Agora, devíamos subir
pela costa brasileira, cruzar o Atlântico, passar pelo norte da África,
transpor o Mediterrâneo e chegar a
Madri. Após o jantar, as luzes do
avião se apagaram e iniciou-se a
mais longa noite de minha vida, dentro de uma espécie de torpedo voador que estremecia a cada instante.
Das dez horas de viagem, seis foram
de turbulências. Afinal, o avião pousou e eu, zonzo de sono, fui esperar
pelas bagagens.
Os dias que se seguiram foram
confortadores e inesquecíveis. Ganhamos novos amigos, tanto espanhóis como brasileiros, que nos fizeram olhar a Espanha de uma nova
maneira. Só que, de vez em quando,
num relance, dizia a mim mesmo:
"O diabo é ter que entrar naquele
avião rumo aos caos aéreo brasileiro". E eu ainda não conhecia a opinião do presidente da Infraero:
"Avião que não cai é o que está no
chão". Pois é, no chão ficarei.
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