São Paulo, terça-feira, 05 de agosto de 2008

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Mil perdões


A culpa morre com os verdadeiros culpados e, no caso da escravatura, morreu no século 19

NUNCA ENTENDI democracias civilizadas que começam a pedir desculpas por crimes passados. O Ocidente traficou escravos durante uma parte generosa do período moderno?
Fato. Vergonhoso fato. Mas essas dinâmicas de conquista e exploração não são e nunca foram uma exclusividade ocidental. O "colonialismo" é uma constante na história da humanidade e nenhum canto do mundo é totalmente inocente se começarmos a recuar no tempo.
A Europa colonizou a África, sim.
Mas só depois da África ter colonizado a Europa. E só depois da Ásia ter colonizado a Europa. E só depois de Roma ter caído às mãos dos bárbaros. E só depois da Grécia ter sido conquistada por Roma. O processo não tem fim e esse recuo demencial levar-nos-ia até ao momento em que o primeiro hominídeo explorou o parceiro nos trabalhos das cavernas.
A culpa não é hereditária; ela morre com os verdadeiros culpados. E, no caso da escravatura, ela morreu no século 19. Porque aquilo que é singular na história do Ocidente não é a escravatura. É, pelo contrário, o esforço que o Ocidente anglo-cristão fez para a abolir. A escravatura continua na África. Continua na Ásia. Continua até na América Latina. E, por incrível que pareça, existem hoje mais escravos do que em qualquer outro período histórico. Os trabalhos recentes de E. Benjamin Skinner são, a este respeito, ilustrativos.
Infelizmente, a Câmara dos Representantes não concorda. E, em resolução histórica, esse órgão do governo federal americano resolveu pedir perdão aos negros pela escravatura e pela segregação racial. Entendo que os Estados Unidos sintam vergonha pelas leis segregacionistas que vigoravam meio século atrás: como compreender essa desvergonha em pleno século 20?
Mas pedir desculpas pela escravatura é ilógico e até imbecil. O jornalista David Horowitz, um especialista nestas matérias, tem explicado por quê. Começa por ser ilógico e imbecil porque também existe participação negra no processo: se os brancos transportavam escravos para o Novo Mundo, é preciso questionar quem os capturava e vendia na África. E, além disso, é preciso não esquecer que, nos Estados Unidos pré-1865, ou seja, antes da abolição, havia também milhares de negros entre os proprietários de escravos. Ironia sinistra: pedir desculpas ao
s negros pela escravatura também é pedir desculpas aos antigos proprietários de escravos. A história da escravatura nos Estados Unidos não é, ao contrário do que imaginam as patrulhas da correção, uma história em preto-e-branco.
Além disso, um país que travou uma Guerra Civil invulgarmente traumática em nome da libertação dos escravos já saldou a sua dívida há muito tempo. Meio milhão de americanos, e sobretudo de americanos brancos, tombou nos campos de batalha entre 1861 e 1865. Pessoalmente, não conheço maior pedido de desculpas.
E hoje? Hoje, a Câmara dos Representantes afirma que a escravatura e a segregação racial contribuíram para o estatuto secundário que os negros americanos ocupam nos Estados Unidos.
A afirmação não seria tão cômica se, por ironia do destino, um negro não fosse o favorito para ocupar a Casa Branca. Mas, esquecendo esse pormenor, existe um outro pormenor ainda mais perverso: a situação dos negros americanos é invulgarmente melhor do que a situação atual dos habitantes da África, um continente devastado pela guerra, pela pobreza, pela doença e pela corrupção dos seus governantes.
Entre ficar nos EUA ou regressar ao Sudão, à Somália, ao Zimbabwe e a outras terras dos seus antepassados, aposto que os negros americanos não hesitariam na escolha.

 

P.S. Minha última crônica, sobre Batman e seus fãs, despertou uma reação inaudita: centenas de e-mails, cartas publicadas na Folha, insultos em sites e blogs e até ameaças de morte. Tudo porque me limitei a emitir uma opinião pessoal que se dividia em duas partes: primeiro, que não consigo "suspender a descrença" quando vejo vigilantes de capa e pijama; e, segundo, que o filme de Christopher Nolan piora este cenário infantil porque filma a fantasia em tom "realista" e "documental". Não creio que nada disso legitime o coro que se foi urdindo com selvática violência. Mas talvez todo o episódio demonstre que, afinal, eu estava mais certo do que pensava: adultos que reagem assim têm, de fato, a idade mental de uma criança.


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