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São Paulo, sexta-feira, 05 de setembro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Tentativa de ensaio sobre os cornos

Antes de tudo, um corno que se preze é filho de corno e amigo de outro. Donde a primeira constatação: o corno é hereditário e contagioso. É também antigo, remontando aos primórdios da humanidade, sua aparição no cenário universal data de milênios antes de Cristo e ameaça se prolongar por muitos milênios depois do próprio.
Para efeitos práticos, há três tipos de corno: os furiosos, os funcionais e os mansos, que podem ser classificados como o corno padrão. É o mais abundante, pois todo homem casado ou apaixonado por uma mulher pode ser corno ex officio, por uma espécie de gravidade, sendo a matéria-prima indispensável para a fabricação do produto final, que é o corno propriamente dito. A mansidão, por sua vez, é dupla em suas manifestações. Há a mansidão consciente, que é sábia e não causa estragos consideráveis, e a inconsciente, que é a mais frequente e indolor.
Cornos mansos e conscientes foram Napoleão Bonaparte e Luiz 16, para citar dois personagens ilustres como exemplo. Cornos mansos e inconscientes foram tais e tantos que nem precisam de exemplo; potencialmente, todos somos traídos. E alguns de nós o são de fato. O caso mais notável do corno manso e inconsciente, num paradoxo da condição humana, seria o Bentinho, pois ficou com a suspeita do adultério de Capitu, fez tudo o que devia fazer, separou-se, afastou-se do filho que suspeitava não ser dele, mas, no fundo, no fundo, ficou com a dúvida e a esperança de estar errado.
A alternativa ao corno manso é o corno furioso, e o mais visível de todos seria Otelo, que nem chegou a ser corno de fato, mas agiu como tal por causa de um lenço que encontrou na alcova de sua mulher. Extenso no tempo, o corno furioso é intenso no modo. Na realidade, deveria ser o paradigma do corno em si, pois o que se espera de um corno decente é que fique furioso com a traição de que é vítima. Há espécimes ao longo da história, sendo um dos mais antigos um mandarim da dinastia Tchan, do ano 6780 a.C, que tinha 55 mulheres e foi traído por todas elas e a todas degolou pessoalmente com um sabre de bambu, para doer mais no pescoço das infiéis.
Sendo extenso, como já disse, o corno furioso é intenso. Há incontáveis exemplos da intensidade com que ele se manifesta: caldeirões com chumbo fervendo, covas com serpentes letais e leões famintos, a fúria de um corno furioso apela para métodos além da imaginação. Um deles, sabendo que estava sendo traído, comprou dois quilos de milho, chegou em casa, espalhou o milho pela sala, puxou o revólver, obrigou a mulher a ficar de quatro e ordenou: "Come, galinha, come!".
Finalmente, chegamos aos cornos funcionais, ou pragmáticos, que, antes de Gérson enunciar sua famosa lei, a de tirar vantagem em tudo, já o faziam por conta própria. E o faziam tão bem, com tanto e tamanho profissionalismo, que nem devem ser considerados cornos em si, mas corretores de uma bolsa de valor, embora não negociem exatamente com a bolsa da mulher, mas com a mulher inteira.
Foram e continuam sendo numerosos em todas as épocas e nações. O exemplo mais fantástico teve seu caso relatado no Antigo Testamento, que, como sabemos, é o livro santo por excelência ditado pelo Senhor. Dá conta de Abraão, que viveu em vários lugares ao longo do Eufrates, em Siquém, em Mênfis, em Cades, acabou morrendo em Meca, já no usufruto do título de "Pai dos Crentes".
Casado com Sara, mulher apetecível mas igualmente piedosa, Abraão fez a proposta: "Vamos a Mênfis e façamos de conta que você é minha irmã, a fim de que me acolham com benevolência". O rei de Mênfis foi benevolente, enamorou-se perdidamente por Sara e presenteou o irmão dela com muitas ovelhas, cabras, bois, mulas, queijos, vinhos, camelos e servos.
Gostando de viajar e de ser acolhido com benevolência por onde andava, Abraão notou que o rei de Mênfis se cansara de Sara e decidiu partir, dirigindo-se ao hórrido deserto de Cades. Um barbudo rei local enamorou-se de Sara, que lhe foi apresentada pelo irmão e, depois de algum tempo, presenteou o cunhado com ovelhas, cabras, bois, mulas, queijos, vinhos, camelos e servos.
Entusiasmado com o processo, Abraão seguiu para outros lugares, fazendo-se passar por irmão de Sara. E, ao fim de seus dias, depois de apresentar a irmã aos reis de cada cidade, era no Oriente Médio o homem que mais possuía ovelhas, cabras, bois, mulas, queijos, vinhos, camelos e servos.
A posteridade encarregou-se de enaltecer a sabedoria de Abraão, venerável como patriarca em três religiões. De maneira que nós, judeus, cristãos e muçulmanos, somos seus descendentes. Infelizmente, não nos deixou como herança suas ovelhas, cabras, bois, mulas, queijos, vinhos, camelos e servos. De minha parte, não saberia o que fazer com o camelo a que teria direito. Mesmo assim, sou grato ao "Pai dos Crentes" pelo exemplo que nos legou.

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