São Paulo, domingo, 05 de setembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DVD/LANÇAMENTOS

Coleção reúne quatro filmes do cineasta, que representam momento de transição em sua carreira

Scorsese mostra os EUA mais perto das ruas

PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA

A coleção de DVDs com quatro filmes de Martin Scorsese que acaba de ser lançada no Brasil pode ser vista como um breve curso sobre o cinema americano moderno do ponto de vista de um de seus realizadores mais importantes. Na verdade, não existe critério na escolha dos títulos que não o comercial: eles só estão reunidos numa caixa porque foram distribuídos pela Warner. Ainda assim, representam o estabelecimento do ponto de vista de um cineasta e um momento de crise em sua carreira, relacionado à transformação no tipo de filme americano dominante.
Cada disco serve como uma breve aula não tanto por seus documentários curtos e objetivos, mas principalmente pelas faixas de comentários bastante pessoais de Scorsese, que situa cada filme em um contexto mais amplo.
Lição número um: "Quem Bate à Minha Porta?" (1968). Scorsese faz parte de uma geração que veio das escolas de cinema. Fazer filmes já não era algo puramente empírico e intuitivo, como o foi para John Ford e Howard Hawks.
Como seus colegas de geração, Scorsese amou e estudou o cinema antes de fazê-lo. O documentário que acompanha o filme chama-se, apropriadamente, "Da Sala de Aula para as Ruas" e é narrado por Mardik Martin, amigo de Scorsese na NYU e seu diretor-assistente. Ele descreve o nascimento do curta realizado durante o curso e que mais tarde receberia outras seqüências para se tornar longa, filmadas ao longo de oito anos. Cada plano foi desenhado, pois, diz Mardik, "papel é muito mais barato do que negativo".
Se a precariedade da realização está estampada, também estão lá a originalidade de Scorsese e, principalmente, o rascunho de seus temas principais: a origem italiana, o legado cristão e a paixão por Nova York.
Lição número dois: "Caminhos Perigosos" (73). Entre "Quem Bate..." e este filme, Scorsese dirigiu um longa para a produtora de Roger Corman, "Sexy e Marginal" (72). Consta que John Cassavetes o teria visto e dito: "É um lixo. Faça algo pessoal". Ele seguiu o conselho em "Caminhos Perigosos". "Hoje, com a distância do tempo, vejo esse filme como uma declaração de princípios; ele diz sobre quem sou e de onde vim", afirma o cineasta nos comentários.
Toda a ação se passa em alguns quarteirões de Little Italy, bairro onde o diretor cresceu. "De Volta à Vizinhança", o curioso documentário que acompanha o filme, foi concebido como uma peça promocional da época e mostra amigos de Scorsese que o inspiraram e que aprovaram o resultado.
Lição número três: "Alice Não Mora Mais Aqui" (74). Este é o filme seguinte de Scorsese, e representa a afirmação de seu nome perante a indústria. O projeto era da atriz Ellen Burstin, que vinha do sucesso de "O Exorcista" e ganhou da Warner carta-branca para o filme seguinte. No "making of", ela diz que, após descartar várias mulheres, mães e prostitutas, se deparou com uma personagem interessante: mulher que perde o marido e põe o pé na estrada. Para dirigi-lo, pesquisou jovens cineastas e bateu à porta de Scorsese. As pressões do estúdio exigiam um final feliz, e foi uma improvisação do ator Kris Kristofferson, incentivada pelo diretor, que o tornou menos ridículo e mais coerente em relação ao resto do filme.
Lição número quatro: "Depois de Horas" (85). Aqui, Scorsese já era um nome consagrado. Havia feito "Taxi Driver" (76), "Touro Indomável" (80) e, depois de "O Rei da Comédia" (83), preparava-se para rodar o grande projeto de sua vida: "A Última Tentação de Cristo". Elenco e locações estavam escolhidos quando a Paramount cancelou tudo. O diretor entrou em depressão.
"Os filmes de que eu gostava já não faziam tanto dinheiro e, de repente, eu me vi sem lugar no cinema americano", diz. Depois do baque, Scorsese procurava um projeto de baixo orçamento que lhe possibilitasse uma "volta às origens" quando seu agente lhe mostrou o roteiro de "Depois de Horas" -comédia de traços surrealistas e expressionistas sobre um homem comum vivendo uma noite em forma de pesadelo.
Essa situação de "estar preso no underground e não saber como sair", diz Scorsese, é alusiva à sua própria crise profissional. "A Última Tentação..." só sairia em 88.
A "Coleção Martin Scorsese" pode até não trazer seus filmes mais importantes, mas apresenta exemplos fundamentais de uma obra coerente, que podem e devem ser vistos como peças históricas. Afinal, fazem parte de um capítulo fundamental do cinema americano, mostram a invenção e a reinvenção de um de seus diretores mais importantes e, ainda, trazem uma importante mudança na representação dos EUA, um pouco mais longe dos mitos e um tanto mais perto das ruas.


Quem Bate à Minha Porta
   
Caminhos Perigosos
    
Alice Não Mora Mais Aqui
   
Depois de Horas
   
Lançamento: Warner
Quanto: R$ 99,90



Texto Anterior: Governo negocia novas regras para a programação; TVs falam em censura
Próximo Texto: Músicas: Caravanas reeditam cultura itinerante
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.