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RÉPLICA
Crítica de letra de música requer entendimento de poesia
CARLOS RENNÓ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Um dos segredos da graça da
nossa canção popular está
na enganosa banalidade de algumas letras. Em sua crítica do novo
disco de Gal Costa, publicada na
última sexta-feira neste caderno,
o jornalista Luiz Fernando Vianna classificou de banais duas letras que fiz para músicas de Lokua
Kanza que a cantora gravou. Banais por quê? Ele não disse. Eu
vou dizer por que elas não são o
que ele disse.
"Mar e Sol", a primeira, desenvolve uma delicada associação de
imagens físico-amorosas entre
dois amantes e as figuras do título
em termos poéticos inusuais.
"E eu a descer,/ A desnascer,
desvanecer;/ A ser em você/ Um
Sol a se dissolver", diz ela, na sugestão (banal?) de evanescência
do elemento ativo, masculino, no
feminino. Em outro trecho, traz
versos como "Me vejo no que vejo" (na verdade, de Octavio Paz,
em "Transblanco") e seu desdobramento, "Olho o que eu olho
me olhar", ao descrever o espelho
dos olhos nos olhos do casal.
O refrão fala em alguém "ao entrar" em alguém, assim como o
corpo do sol ao entrar no mar no
pôr-do-sol, assim como um corpo ao (se) pôr no outro. Associa,
por fim, morte (a do sol no horizonte marítimo) a gozo e pós-gozo. Pode uma canção de amor ser
banal com tudo isso?
Não vou discorrer sobre a elegância das palavras cantadas justapostas à melodia: óbvia demais
para ouvidos sensíveis. Mas lembro ainda alguns detalhes estilísticos não exatamente triviais... A simetria dos versos "Um Sol" e
"Um só", situados em inícios de
estrofes e distantes um do outro.
E a das duplas de rimas próximas
"só"/"nó" e "sós"/"nós". E, falando em rimas, o índice (70%) de ricas, muito acima da média das letras em geral.
Essas e outras graças da canção
já encantaram ouvintes mais críticos e perceptivos.
"Te Adorar", a segunda, pode,
no aspecto temático (a adoração
do ser amado no corpo do ser
amado), soar banal a alguns, enquanto outros simplesmente a
considerarão simples.
No tratamento sonoro, porém,
na sua limitada extensão, ela tece
uma elaborada rede de rimas internas (seis), aliterações (12; uma,
rara, em "obs"; algumas, tríplices)
e anáforas resumíveis numa palavra: melopéia.
Além disso, todas as suas rimas
(as finais) são ricas. Que outra
mera canção de amor apresenta
esse fator que a tornaria invulgar,
mas que passou despercebido ao
crítico?
Para chamar de banal -ou de
linda- uma letra, um crítico tem
de entender de poesia. Ou corre o
risco da banalidade.
Carlos Rennó é letrista e jornalista, organizador de "Gilberto Gil Todas as Letras" (Companhia das Letras) e produtor
do CD "Cole Porter e George Gershwin Canções, Versões" (Geléia Geral)
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