São Paulo, segunda-feira, 05 de setembro de 2005

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RÉPLICA

Crítica de letra de música requer entendimento de poesia

CARLOS RENNÓ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um dos segredos da graça da nossa canção popular está na enganosa banalidade de algumas letras. Em sua crítica do novo disco de Gal Costa, publicada na última sexta-feira neste caderno, o jornalista Luiz Fernando Vianna classificou de banais duas letras que fiz para músicas de Lokua Kanza que a cantora gravou. Banais por quê? Ele não disse. Eu vou dizer por que elas não são o que ele disse.
"Mar e Sol", a primeira, desenvolve uma delicada associação de imagens físico-amorosas entre dois amantes e as figuras do título em termos poéticos inusuais.
"E eu a descer,/ A desnascer, desvanecer;/ A ser em você/ Um Sol a se dissolver", diz ela, na sugestão (banal?) de evanescência do elemento ativo, masculino, no feminino. Em outro trecho, traz versos como "Me vejo no que vejo" (na verdade, de Octavio Paz, em "Transblanco") e seu desdobramento, "Olho o que eu olho me olhar", ao descrever o espelho dos olhos nos olhos do casal.
O refrão fala em alguém "ao entrar" em alguém, assim como o corpo do sol ao entrar no mar no pôr-do-sol, assim como um corpo ao (se) pôr no outro. Associa, por fim, morte (a do sol no horizonte marítimo) a gozo e pós-gozo. Pode uma canção de amor ser banal com tudo isso?
Não vou discorrer sobre a elegância das palavras cantadas justapostas à melodia: óbvia demais para ouvidos sensíveis. Mas lembro ainda alguns detalhes estilísticos não exatamente triviais... A simetria dos versos "Um Sol" e "Um só", situados em inícios de estrofes e distantes um do outro. E a das duplas de rimas próximas "só"/"nó" e "sós"/"nós". E, falando em rimas, o índice (70%) de ricas, muito acima da média das letras em geral.
Essas e outras graças da canção já encantaram ouvintes mais críticos e perceptivos.
"Te Adorar", a segunda, pode, no aspecto temático (a adoração do ser amado no corpo do ser amado), soar banal a alguns, enquanto outros simplesmente a considerarão simples.
No tratamento sonoro, porém, na sua limitada extensão, ela tece uma elaborada rede de rimas internas (seis), aliterações (12; uma, rara, em "obs"; algumas, tríplices) e anáforas resumíveis numa palavra: melopéia.
Além disso, todas as suas rimas (as finais) são ricas. Que outra mera canção de amor apresenta esse fator que a tornaria invulgar, mas que passou despercebido ao crítico?
Para chamar de banal -ou de linda- uma letra, um crítico tem de entender de poesia. Ou corre o risco da banalidade.


Carlos Rennó é letrista e jornalista, organizador de "Gilberto Gil Todas as Letras" (Companhia das Letras) e produtor do CD "Cole Porter e George Gershwin Canções, Versões" (Geléia Geral)

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