São Paulo, quarta-feira, 05 de setembro de 2007

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MARCELO COELHO

Sapos, caranguejos e homens

"Pescadores de Aran", de Robert Flaherty, mostra homens expostos à crueldade do mar

GUARDAR UM caranguejo dentro do gorro de lã e enfiar depois o gorro na própria cabeça está longe de ser o meu ideal de contato com a natureza. Mas é isso o que faz, sorrindo, um menino irlandês, no documentário "Pescadores de Aran", que Robert Flaherty dirigiu em 1934.
O filme foi lançado há pouco em DVD, numa caixa da Magnus Opus que também traz "A História de Louisiana", semidocumentário rodado em 1948 pelo mesmo cineasta. Também nesse filme há um garoto pescador e sorridente. Não usa caranguejos portáteis como isca; em compensação, leva permanentemente um sapo preso ao forro da blusa. Útil, pelo que deduzi do filme, para afastar lobisomens e outras assombrações comuns nos pântanos da Louisiana.
Aqueles labirintos de águas negras, entrecortados de raízes enormes, constituem um ambiente ideal para os crocodilos. Para os seres humanos, nem tanto, como bem sabem os espectadores de "Down by Law", filme de Jim Jarmusch sobre dois fugitivos que se embrenham pelos "bayous".
Apesar dos répteis, o delta do Mississippi se apresenta deslumbrante e idílico no DVD de Flaherty. A fotografia de Richard Leacock alcança extremos de luminosidade e profundeza. Temos a ilusão de que o barco do menino desliza na noite, até que, de repente, uma falha na copa das árvores deixa a luz do sol explodir sobre a tela, como se quisesse perfurá-la de tanto brilho.
Outras explosões ocorrem, entretanto, em "A História de Louisiana".
Há atividades de prospecção de petróleo no lugar. Lanchas motorizadas vão e vêm, com seus técnicos e representantes comerciais; o barulho da dinamite espanta os pássaros e, pouco mais tarde, uma torre petrolífera surge quase que às portas da cabana do menino.
Seria tudo muito óbvio se o filme contasse, do ponto de vista ecológico a que estamos acostumados hoje em dia, a destruição do harmonioso estilo de vida daqueles caçadores de crocodilos. Sem dúvida, Robert Flaherty tende a isso. Desde "Nanook, o Esquimó", de 1922, o cineasta se dedicou a mostrar um tipo de existência humana reduzida a artefatos técnicos mínimos.
Justamente por isso, a relação entre homem e natureza não poderia ser mais áspera e difícil nos seus filmes. "Pescadores de Aran" mostra homens expostos o tempo todo à crueldade do mar. Vivendo pendurados em penhascos, não dispõem sequer de uma extensão mínima de solo agricultável; para plantar qualquer legume, têm de transportar em pequenos baldes a pouca terra que encontram, como se fossem garimpeiros, levando-a até as gretas mais altas dos rochedos, onde estará protegida do sal e do vento.
De modo que, voltando aos pântanos da Louisiana, a chegada dos poços de petróleo poderia até ser uma vantagem. O filme de Flaherty entra num verdadeiro parafuso de ambivalência: foi a Standard Oil quem financiou o trabalho do cineasta. O equilíbrio natural da região foi atingido, mas os moradores se beneficiaram um pouco. A beleza desabitada da paisagem é mostrada sob o ataque dos homens, mas a beleza, igualmente desumana e hostil, das máquinas e das luzes elétricas é tema de grande poesia em preto-e-branco.
Numa espécie de feitiço, o menino joga um punhado de sal sobre o poço de petróleo. Não sabemos, até o fim, se pretendia ajudar ou prejudicar os geólogos da companhia. É esse o sal da ambigüidade, afinal, de parte das atividades humanas.
Mas o que fascina Flaherty é menos a complexidade da ética e da economia, e mais o que, tanto na natureza quanto na técnica, exista de alheio, de indiferente ao homem. Tanto mais bonita é a cena quanto menos "moralizada" for.
Parece ser também este o espírito de "As Crônicas do Brasil", livro de Rudyard Kipling (1865-1936) lançado em edição bilíngüe pela Landmark. O autor do "Livro da Jângal" esteve por aqui em 1927, e o pequeno volume de suas reportagens apresenta menos observações sobre os costumes locais (o Carnaval do Rio, a indisciplina das crianças) do que sobre a natureza (as cobras do Butantã) e a indústria (a usina Henry Borden, na serra do Mar).
Novamente, e às vezes com linguagem tão opulenta quanto as cenas de Flaherty, há aqui uma estética dividida entre o espanto da natureza e o da civilização, com pouco espaço para costumes, crenças, amores, palavras humanas. Em meio a máquinas ou árvores, motores ou crocodilos, cada homem parece, por vezes, estar absolutamente só.


coelhofsp@uol.com.br

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