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MARCELO COELHO
Sapos, caranguejos e homens
"Pescadores de Aran", de Robert Flaherty, mostra homens expostos à crueldade do mar
GUARDAR UM caranguejo dentro do gorro de lã e enfiar depois o gorro na própria cabeça está longe de ser o meu ideal de
contato com a natureza. Mas é isso o
que faz, sorrindo, um menino irlandês, no documentário "Pescadores
de Aran", que Robert Flaherty dirigiu em 1934.
O filme foi lançado há pouco em
DVD, numa caixa da Magnus Opus
que também traz "A História de
Louisiana", semidocumentário rodado em 1948 pelo mesmo cineasta.
Também nesse filme há um garoto pescador e sorridente. Não usa caranguejos portáteis como isca; em
compensação, leva permanentemente um sapo preso ao forro da
blusa. Útil, pelo que deduzi do filme,
para afastar lobisomens e outras assombrações comuns nos pântanos
da Louisiana.
Aqueles labirintos de águas negras, entrecortados de raízes enormes, constituem um ambiente ideal
para os crocodilos. Para os seres humanos, nem tanto, como bem sabem os espectadores de "Down by
Law", filme de Jim Jarmusch sobre
dois fugitivos que se embrenham
pelos "bayous".
Apesar dos répteis, o delta do Mississippi se apresenta deslumbrante
e idílico no DVD de Flaherty. A fotografia de Richard Leacock alcança
extremos de luminosidade e profundeza. Temos a ilusão de que o
barco do menino desliza na noite,
até que, de repente, uma falha na copa das árvores deixa a luz do sol explodir sobre a tela, como se quisesse
perfurá-la de tanto brilho.
Outras explosões ocorrem, entretanto, em "A História de Louisiana".
Há atividades de prospecção de petróleo no lugar. Lanchas motorizadas vão e vêm, com seus técnicos e
representantes comerciais; o barulho da dinamite espanta os pássaros
e, pouco mais tarde, uma torre petrolífera surge quase que às portas
da cabana do menino.
Seria tudo muito óbvio se o filme
contasse, do ponto de vista ecológico a que estamos acostumados hoje
em dia, a destruição do harmonioso
estilo de vida daqueles caçadores de
crocodilos. Sem dúvida, Robert Flaherty tende a isso. Desde "Nanook, o
Esquimó", de 1922, o cineasta se dedicou a mostrar um tipo de existência humana reduzida a artefatos técnicos mínimos.
Justamente por isso, a relação entre homem e natureza não poderia
ser mais áspera e difícil nos seus filmes. "Pescadores de Aran" mostra
homens expostos o tempo todo à
crueldade do mar. Vivendo pendurados em penhascos, não dispõem
sequer de uma extensão mínima de
solo agricultável; para plantar qualquer legume, têm de transportar em
pequenos baldes a pouca terra que
encontram, como se fossem garimpeiros, levando-a até as gretas mais
altas dos rochedos, onde estará protegida do sal e do vento.
De modo que, voltando aos pântanos da Louisiana, a chegada dos poços de petróleo poderia até ser uma
vantagem. O filme de Flaherty entra
num verdadeiro parafuso de ambivalência: foi a Standard Oil quem financiou o trabalho do cineasta. O
equilíbrio natural da região foi atingido, mas os moradores se beneficiaram um pouco. A beleza desabitada
da paisagem é mostrada sob o ataque dos homens, mas a beleza, igualmente desumana e hostil, das máquinas e das luzes elétricas é tema de
grande poesia em preto-e-branco.
Numa espécie de feitiço, o menino
joga um punhado de sal sobre o poço
de petróleo. Não sabemos, até o fim,
se pretendia ajudar ou prejudicar os
geólogos da companhia. É esse o sal
da ambigüidade, afinal, de parte das
atividades humanas.
Mas o que fascina Flaherty é menos a complexidade da ética e da
economia, e mais o que, tanto na natureza quanto na técnica, exista de
alheio, de indiferente ao homem.
Tanto mais bonita é a cena quanto
menos "moralizada" for.
Parece ser também este o espírito
de "As Crônicas do Brasil", livro de
Rudyard Kipling (1865-1936) lançado em edição bilíngüe pela Landmark. O autor do "Livro da Jângal"
esteve por aqui em 1927, e o pequeno volume de suas reportagens
apresenta menos observações sobre
os costumes locais (o Carnaval do
Rio, a indisciplina das crianças) do
que sobre a natureza (as cobras do
Butantã) e a indústria (a usina
Henry Borden, na serra do Mar).
Novamente, e às vezes com linguagem tão opulenta quanto as cenas de Flaherty, há aqui uma estética dividida entre o espanto da natureza e o da civilização, com pouco espaço para costumes, crenças, amores, palavras humanas. Em meio a
máquinas ou árvores, motores ou
crocodilos, cada homem parece, por
vezes, estar absolutamente só.
coelhofsp@uol.com.br
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