São Paulo, sexta-feira, 05 de outubro de 2007

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CARLOS HEITOR CONY

"Cão como Nós"


Alegre escreveu pequenos textos em que evoca o amigo que o acompanhava à praia, às caçadas, à pescaria

A EDIOURO está lançando sob o selo da Agir, recentemente adquirido pela tradicional editora carioca, o novo livro do escritor e político português Manuel Alegre, "Cão como Nós".
Poeta e romancista, nascido em 1936, na cidade de Águeda, destacou-se na política estudantil de Coimbra como líder da juventude contra o regime do primeiro-ministro Salazar.
Convocado para o serviço militar, foi para Angola, onde liderou uma rebelião contra a guerra colonial. Exilado na Argélia durante dez anos, só retornou a Portugal após a Revolução dos Cravos, que derrubou uma das ditaduras mais longas da Europa no século 20.
Em 2002, após a morte de Kurika, um épagneul bretão de manchas castanhas e uma espécie de estrela branca na testa, escreveu pequenos textos em que evoca o companheiro e amigo que o acompanhava à praia, às caçadas e pescarias e, sobretudo, no cotidiano doméstico, tornando-se uma presença que somente o amor do cão pelo dono e do dono pelo cão justifica, mas nem sempre pode explicar.
"Sei que andas por aí, ouço os teus passos em certas noites, quando me esqueço e fecho as portas começas a raspar devagarinho, às vezes rosnas, posso mesmo jurar que já te ouvi a uivar, cá em casa dizem que é o vento, eu sei que és tu, os cães também regressam, sei muito bem que andas por aí."
Tenho a lembrança de um trecho do "The Waste Land", de T.S. Eliot: "- Que rumor é este? - O vento sob a porta. - E que rumor é este agora? Que anda o vento a fazer lá fora? -Nada. Como sempre, nada" (Tradução de Ivan Junqueira).
Este rumor que é nada, apenas o vento sob a porta, torna-se o disfarce mais comum das ausências que sentimos (ou sofremos). Elas nos visitam quando menos esperamos, às vezes parece que estamos momentaneamente esquecidos de um vulto, um passo, um hálito perto de nós, uma sombra sem forma que se destaca de outras sombras que nos cercam. É então que do nada surge não a lembrança apenas, mas a marca física de uma presença que amamos.
A pedido da editora, fiz o prefácio do livro de Manuel Alegre que aqui transcrevo:
"Ora, direis, um cão é um cão, para sempre será um cão, nunca será como nós. Mas podemos dividir a humanidade entre aqueles que amam os cães e os entendem, e aqueles que não amam cães. Para entendê-los, é preciso amá-los, como no caso de Olavo Bilac no soneto dedicado às estrelas: "amai para entendê-las"."
Quanto às estrelas, não sei o que perdem os que não sabem amá-las nem entendê-las. Mas tenho a certeza de que, no caso dos cães, aqueles que não os entendem não sabem o que estão perdendo.
Manuel Alegre nos guia por entre os caminhos e descaminhos do universo criado pela relação do ser humano com o cão. Em capítulos curtos, precisos, evocando a ausência sempre presente de Kurika, o autor se entrega e nos entrega à emoção de uma narrativa poética basicamente humana, apesar de um dos elementos desta emoção ser um cão.
Muita literatura foi escrita para definir ou explicar esta relação entre dois seres da natureza, um racional, como o homem, outro até aqui considerado irracional, como o cão. Uma relação que, como o samba de Noel Rosa, não se aprende no colégio. Há que vivê-la, deixar acontecer, pois fatalmente acontece.
Tal como Manuel Alegre, também fui seduzido pelo amor que Mila me ofereceu durante 13 anos, fazendo-me um novo homem, encarando a vida de forma menos amarga. Eu não a escolhi. Ela é que me escolheu como dono, dono da chuva, do vento, do sol e da vida. Acima de tudo dono dela.
No território da emoção absoluta, ela entendia minhas palavras e meu silêncio, fazia-se entender pelo olhar, pela expressão corporal, pelo suspiro que dava quando lhe fazia a vontade de carinho e atenção. Foi o fio terra que me desarmou, me acalmou, alegrou e deu um sentido inesperado a momentos que passariam sem deixar memória.
Com a intensidade de um poeta que manipula instantes, Manuel Alegre relembra Kurika em diversos flashes que formam o patrimônio afetivo de quem é dono de um cão e, de certa forma, se torna servo do cão. Dispensando palavras e gestos, os dois -cão e dono- se entendem principalmente naquilo que não se sabe dizer."


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