São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

BIA ABRAMO

O realismo inverossímil da telenovela


Essa espécie de crise do modelo "representativo" atingiu o cerne da narrativa para a TV


A TELENOVELA brasileira vem sofrendo de algo que se pode chamar de "realismo inverossímil". Duas das novelas de maior audiência hoje no ar, "A Favorita" e "Três Irmãs", ambas na Globo, têm muitas semelhanças nesse sentido. O modelo de telenovela que se impôs nos anos 70 e 80 no Brasil parte do princípio que é da sua obrigação usar a ficção para discutir assuntos de relevância no mundo real e, de quebra, tentar representar o Brasil daquele momento.
Hoje, a telenovela continua apostando nesse certo realismo apoiado numa versão muito diluída do nacional-popular, mas perdeu um tanto a mão. O Brasil, afinal, se saiu muito mais diverso e complicado do que se imaginava, e não cabe mais na simplificação da telenovela.
O interessante é que essa espécie de crise do modelo "representativo" atingiu o cerne das narrativas. Seja por causa da pressão de produzir audiência de qualquer maneira, seja por uma certa ignorância ficcional, o fato é que esse realismo cada vez mais de araque vem acompanhado de narrativas esburacadas, personagens ruins, viravoltas previsíveis etc. Para ficar num exemplo simples, "A Favorita" e "Três Irmãs" têm situações geográficas completamente absurdas.
Na primeira, a cidade fictícia, pertíssimo de São Paulo a ponto de os personagens viverem trançando de lá para cá, tem ao mesmo tempo grandes fazendas e indústrias de porte para ter um movimento sindical significativo.
Para a segunda inventaram uma cidade onde os jovens falam e agem como se estivessem num shopping da Barra da Tijuca, os adultos parecem saídos de uma novela "nordestina" dos anos 70 e, bem, alguns personagens direto de um hospício dirigido em conjunto por Walt Disney e Dias Gomes.
Qual é o problema dessa geografia do autor doido? Se ainda, de fato, se quiser representar, de alguma forma, o Brasil, mesmo que numa chave interpretativa bem mais modesta do que já se quis, não adianta eleger temas aparentemente quentes e importantes e fazê-los entrar à força numa moldura ficcional esgarçada, sujeita às alavancagens de audiência e, de fato, incapaz de estabelecer relações empáticas com o público.
Claro que ficção, qualquer uma, exige alguma "suspensão da descrença", mas não a retirada total e absoluta de qualquer coerência, consistência e verossimilhança.
Dessa maneira, deixa de ser ficção e torna-se um nada, recheado de comerciais.

biabramo.tv@uol.com.br


Texto Anterior: Novelas da semana
Próximo Texto: Crítica: Em "Bourne", Estado suprime liberdade
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.