São Paulo, Sexta-feira, 05 de Novembro de 1999
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Filmar com 'Fé'

Cristian Avello Cancino/Folha Imagem
O diretor Ronaldo Dias, do documentário "Fé", que estréia hoje em São Paulo, passa em frente à basílica de Canindé



Estréia documentário de Ricardo Dias, que flagra os diversos espetáculos da crença pelo Brasil todo


CRISTIAN AVELLO CANCINO
enviado especial a Canindé (CE)

É como se os homens tivessem nascido para sofrer e morrer, mas, enquanto Hades não abre seus porões, aqui na terra presenciamos a movimentação de diferentes crenças para recuperar a potência da fé.
Esse espetáculo foi flagrado em todos os cantos do país por "Fé", documentário de Ricardo Dias que estréia hoje em São Paulo.
"As pessoas têm medo daquilo que não conhecem, e isso se manifesta das mais diversas formas. Uma delas é o desprezo, a indiferença", diz Dias, que trata de reverter essa postura com o filme, rodado em diversos Estados brasileiros e que, antes de estrear em São Paulo, foi apresentado, no início de outubro, para uma platéia de romeiros em Canindé, sertão do Ceará, ao mesmo tempo que recebia, na França, o prêmio de melhor documentário do Festival de Biarritz.
Dias teceu um deslumbrante panorama visual sobre ardor e crença, sofrimento e devoção. Abriu bem os olhos para a relação muito pessoal que cada indivíduo mantém com seu objeto de adoração. "Surgem guerras por conta disso."
Há, entretanto, um outro lado na construção permanente do sagrado, e Dias se equilibra entre essas duas forças sem emitir juízos de valor, "porque não tenho competência para fazê-lo", como dizia antes da exibição do filme para a platéia de romeiros que se aglomerava em frente à basílica de Canindé, no dia 3 de outubro.
"A vida fica meio sem graça se ficarmos apenas no cotidiano, é preciso que os mitos se renovem, a busca da felicidade pela razão é muito curta", diz o diretor.
Ele compreendeu que a consciência mítica é ingênua, desprovida de problemas. Ao mesmo tempo, porém, com "Fé", Dias confirma a intuição de Pierre Clastres, que, no seu livro "Arqueologia da Violência", escreveu: "O ritual sempre tem lugar em uma atmosfera dramatizada ao extremo".
É uma boa imagem para pensar o país de "Fé", ainda mais nesta semana, quando vimos um místico ajuntamento de 600 mil pessoas cantando em coro com o padre Marcelo Rossi, nas ruas de São Paulo, em louvor aos mortos.
Logo de início, o documentário de Dias nos localiza no tempo e no espaço: "Brasil, final do século 20", aparece na tela. "É para dizer que, após um século de tantas transformações, o pensamento não mudou."
Ainda se vê a verdade intuída dos devotos, percebida de maneira espontânea, sem a necessidade de provas, que isso seria decorrência da razão.
Raízes da religião, que se localizam no mito, na realidade vivida, são ressaltadas por "Fé", provocando o acesso do espectador ao ritual, à experiência singular do transe religioso.
A certa altura, o mago Raul de Xangô surge na tela. "Em vez de tratar de descobrir o mistério, na magia convive-se com ele. Quando uma entidade se apodera do corpo, perde-se o instinto de conservação. Eu já andei sobre cacos de vidro porque a entidade quis, mas, se estivesse consciente, não me permitiria isso", depõe.
Aproxima-se, com isso, das palavras do etnólogo e fotógrafo francês Pierre Verger, que, em sua última entrevista, captada pelo documentário "Pierre Verger -Mensageiro Entre Dois Mundos", diz: "O candomblé é um esquecimento, no transe não temos consciência de estupidez como nacionalidade, cor de pele etc.". E Dias, confesso ignorante nos mistérios até o momento em que resolveu documentá-los, reitera: "É para ter inveja das pessoas que conseguem estabelecer uma relação assim com a religião".
Por conta disso, "Fé" lança um olhar respeitoso sobre a aceitação das prescrições religiosas, mesmo que essas surjam da mera necessidade de adequação às exigências dos rebanhos, desprovidos da ajuda funcional que o Estado deveria lhes oferecer, como nos ocorre ao pensar o atual avanço das religiões evangélicas no país.
O psicanalista Adalberto Barreto, outro personagem do filme, explica: "As pessoas pedem aos santos porque não se podem relacionar com os humanos. Os mortos, portanto, assumem o papel do Estado no momento em que são incumbidos da cura das mazelas sociais".
Nesse sentido, "Fé" torna mais fácil a compreensão do fenômeno evangélico. Ao tempo em que vemos o dinheiro tomar de assalto o pensamento das pessoas, surgem essas igrejas que, de uma ou outra forma, normatizam, pelo dinheiro e pela velocidade, a experiência religiosa. "É preciso saber que as evangélicas são igrejas modernas, que se adaptam ao Brasil atual, urbano, e estão na frente na corrida para dominar as cidades grandes com seus cultos funcionais, eficientes, com suas promessas de facilidades", pensa Dias.
"De que forma poderia um culto de candomblé ocorrer na av. Celso Garcia (zona leste de São Paulo)?", pergunta o diretor. "Não há mais tempo para isso, o candomblé passou a ser uma religião de bairro, sem lugar no cotidiano das metrópoles." E, de fato, Dias teve de ir a Cachoeira, no interior da Bahia, para filmar um ritual afro-brasileiro.
"Fé" teve gênese em um Brasil profundo. "A idéia veio quando realizávamos "No Rio das Amazonas" (seu documentário anterior, filmado em 1995). Nessas viagens, reconhecia, em todas as partes do país, elementos religiosos entranhados no cotidiano das pessoas, que nos recebiam falando de Deus, de suas religiões, espontaneamente, sem que sequer perguntássemos a elas sobre as suas crenças." "Fé" chega agora à cidade grande, para contar que ainda existe um Brasil profundo, onde o fervor e a fé continuam a mover montanhas. Pelo menos, é nisso que se crê.


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