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São Paulo, quarta-feira, 05 de novembro de 2003

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PERSONALIDADE

Ideologia paradoxal marcou carreira de Rachel de Queiroz, que foi esquerdista e pró-direita da ditadura

Escritora defendia as raízes do status quo

DO BANCO DE DADOS

Sempre costumavam fazer a Rachel de Queiroz as mesmas perguntas: qual tinha sido seu relacionamento com os autores do golpe de 64, o que ela achava de seu primeiro livro "O Quinze", de ser a primeira mulher na Academia Brasileira de Letras etc. Como a escritora teve vida longa, era como se fosse necessário criar nas entrevistas, para que a conversa não soasse repetitiva.
Era difícil entrevistar Rachel de Queiroz, atravessar seu estilo polido, simpático, mas fechado. Ela não era do tipo apaixonado, o que se refletia também no tom de sua literatura: pouca inquietação, pouca angústia. Foi revelando aos poucos, ao longo de sua vida, o vasto conhecimento que tinha sobre personalidades literárias brasileiras e fatos históricos importantes que presenciou.
Só no final da vida, como em seu livro de memórias "Tantos Anos", abordou assuntos delicados como a homossexualidade de seu amigo Mário de Andrade ou de seu primo Pedro Nava.
Em agosto de 1991, numa entrevista para o caderno Mais!, em seu apartamento, no Rio de Janeiro, Rachel fez uma única revelação, entre interrupções para ansiosas conversas ao telefone, enquanto deliberava sobre a escolha do nome de um felizardo para ocupar uma vaga então aberta na ABL. A revelação? Sua opinião pessoal e bastante favorável a Clarice Lispector -pois quem poderia imaginar que escritoras e personalidades tão diversas tivessem sequer se conhecido?
Sete anos depois, ao ser entrevistada em sua fazenda de Quixadá, no Ceará, outra revelação -uma que dava conta da "curva ideológica paradoxal" da escritora, que foi num dia esquerdista e, no outro, pró-direita da ditadura. Naquele fevereiro de 1998, a seca assolava mais uma vez o sertão do Nordeste. Os flagelados realizavam saques nos armazéns das pequenas cidades sertanejas.
Rachel de Queiroz, que estava na fazenda para tomar providências que amenizassem os efeitos da seca em sua propriedade, declarou-se radicalmente contra os saques e bastante compreensiva com a falta de verbas governamentais no combate à seca: "A escritora é contra os saques dos flagelados e acha que o governo tem que dar trabalho aos agricultores e ampliar as frentes para a construção de estradas e açudes. "O governo só faz a coisa ocasional. Vem a seca, eles abrem umas frentes de trabalho, mas a grande açudagem, a distribuição da água, a irrigação... É trabalho que exige verbas, o governo federal nem sempre dá ou pode'" (revista "Marie Claire").
Pois era de se esperar outra postura da escritora de "O Quinze", nosso primeiro grande romance sobre a seca, ainda que rejeitado pela autora no fim de sua vida. Em entrevista a Cynara Menezes (Folha, 1998), Rachel dizia ter uma "antipatia mortal" por seu próprio romance e sentir-se perseguida por ele havia 60 anos.
A "curva ideológica paradoxal" da escritora foi definida por Alfredo Bosi: ela passaria "do socialismo libertário de "Caminho de Pedras" às crônicas (...) de espírito conservador. (...) Curva ideológica que se explica muito bem se inserida no roteiro do tenentismo que a condicionou; verbalmente revolucionário em 30, sentimentalmente liberal e esquerdizante em face da ditadura, acabou enfim, passada a guerra, identificando- se com a defesa passional das raízes do status quo."
Rachel de Queiroz pode ser definida assim, uma escritora do status quo. Ela parece não ter dado importância suficiente ao lugar que lhe coube na história de nossa literatura: a de ser uma pioneira, a primeira entre muitos homens. Ao ser lançado, em 1930, "O Quinze" atraiu olhares de espanto por ser obra de mulher.
Mas a primeira grande personagem da primeira grande escritora mulher foi também uma mulher: Conceição, heroína de "O Quinze", uma jovem professora órfã, moça diferente, que tinha "umas idéias" avançadas para sua época.
"Então, ser superior é renunciar ao seu feitio e à sua vontade, e, recortando todo o excesso de personalidade, amoldar-se à forma comum dos outros?", pensava ela, enquanto admirava "o relevo poderoso das pernas" de Vicente, que mexeria com seu coração.
Conceição inaugurava o discurso da mulher escritora, num momento em que a literatura era dominada por homens.
"O Quinze" será para sempre o romance de Rachel de Queiroz.
Dividida entre a literatura e o jornalismo, vivendo entre o Rio e o sertão do Quixadá, a escritora parecia uma árvore atravessando o século, firme, forte como os mandacarus. Sua literatura inspirou outras, sua presença enriquece para sempre a nossa cultura.


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