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PERSONALIDADE
Ideologia paradoxal marcou carreira de Rachel de Queiroz, que foi esquerdista e pró-direita da ditadura
Escritora defendia as raízes do status quo
DO BANCO DE DADOS
Sempre costumavam fazer a
Rachel de Queiroz as mesmas
perguntas: qual tinha sido seu relacionamento com os autores do
golpe de 64, o que ela achava de
seu primeiro livro "O Quinze", de
ser a primeira mulher na Academia Brasileira de Letras etc. Como
a escritora teve vida longa, era como se fosse necessário criar nas
entrevistas, para que a conversa
não soasse repetitiva.
Era difícil entrevistar Rachel de
Queiroz, atravessar seu estilo polido, simpático, mas fechado. Ela
não era do tipo apaixonado, o que
se refletia também no tom de sua
literatura: pouca inquietação,
pouca angústia. Foi revelando aos
poucos, ao longo de sua vida, o
vasto conhecimento que tinha sobre personalidades literárias brasileiras e fatos históricos importantes que presenciou.
Só no final da vida, como em
seu livro de memórias "Tantos
Anos", abordou assuntos delicados como a homossexualidade de
seu amigo Mário de Andrade ou
de seu primo Pedro Nava.
Em agosto de 1991, numa entrevista para o caderno Mais!, em
seu apartamento, no Rio de Janeiro, Rachel fez uma única revelação, entre interrupções para ansiosas conversas ao telefone, enquanto deliberava sobre a escolha
do nome de um felizardo para
ocupar uma vaga então aberta na
ABL. A revelação? Sua opinião
pessoal e bastante favorável a Clarice Lispector -pois quem poderia imaginar que escritoras e personalidades tão diversas tivessem
sequer se conhecido?
Sete anos depois, ao ser entrevistada em sua fazenda de Quixadá, no Ceará, outra revelação
-uma que dava conta da "curva
ideológica paradoxal" da escritora, que foi num dia esquerdista e,
no outro, pró-direita da ditadura.
Naquele fevereiro de 1998, a seca
assolava mais uma vez o sertão do
Nordeste. Os flagelados realizavam saques nos armazéns das pequenas cidades sertanejas.
Rachel de Queiroz, que estava
na fazenda para tomar providências que amenizassem os efeitos
da seca em sua propriedade, declarou-se radicalmente contra os
saques e bastante compreensiva
com a falta de verbas governamentais no combate à seca: "A escritora é contra os saques dos flagelados e acha que o governo tem
que dar trabalho aos agricultores
e ampliar as frentes para a construção de estradas e açudes. "O governo só faz a coisa ocasional.
Vem a seca, eles abrem umas
frentes de trabalho, mas a grande
açudagem, a distribuição da água,
a irrigação... É trabalho que exige
verbas, o governo federal nem
sempre dá ou pode'" (revista
"Marie Claire").
Pois era de se esperar outra postura da escritora de "O Quinze",
nosso primeiro grande romance
sobre a seca, ainda que rejeitado
pela autora no fim de sua vida.
Em entrevista a Cynara Menezes
(Folha, 1998), Rachel dizia ter
uma "antipatia mortal" por seu
próprio romance e sentir-se perseguida por ele havia 60 anos.
A "curva ideológica paradoxal"
da escritora foi definida por Alfredo Bosi: ela passaria "do socialismo libertário de "Caminho de Pedras" às crônicas (...) de espírito
conservador. (...) Curva ideológica que se explica muito bem se inserida no roteiro do tenentismo
que a condicionou; verbalmente
revolucionário em 30, sentimentalmente liberal e esquerdizante
em face da ditadura, acabou enfim, passada a guerra, identificando- se com a defesa passional das
raízes do status quo."
Rachel de Queiroz pode ser definida assim, uma escritora do
status quo. Ela parece não ter dado importância suficiente ao lugar que lhe coube na história de
nossa literatura: a de ser uma pioneira, a primeira entre muitos homens. Ao ser lançado, em 1930,
"O Quinze" atraiu olhares de espanto por ser obra de mulher.
Mas a primeira grande personagem da primeira grande escritora
mulher foi também uma mulher:
Conceição, heroína de "O Quinze", uma jovem professora órfã,
moça diferente, que tinha "umas
idéias" avançadas para sua época.
"Então, ser superior é renunciar
ao seu feitio e à sua vontade, e, recortando todo o excesso de personalidade, amoldar-se à forma comum dos outros?", pensava ela,
enquanto admirava "o relevo poderoso das pernas" de Vicente,
que mexeria com seu coração.
Conceição inaugurava o discurso da mulher escritora, num momento em que a literatura era dominada por homens.
"O Quinze" será para sempre o
romance de Rachel de Queiroz.
Dividida entre a literatura e o
jornalismo, vivendo entre o Rio e
o sertão do Quixadá, a escritora
parecia uma árvore atravessando
o século, firme, forte como os
mandacarus. Sua literatura inspirou outras, sua presença enriquece para sempre a nossa cultura.
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