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MARCELO COELHO
Inclusão
Frequento muito o shopping Pátio Higienópolis. Fica
perto de casa, dá para ir a pé. Recomendam-me caminhadas, e
não gosto de andar sem objetivo.
Dar voltas numa pista de corrida
sob o sol acho impensável. Já tentei a esteira ergométrica, na esperança de conseguir ler durante o
exercício. Não me concentro; o
marcador da velocidade e dos
quilômetros (melhor dizendo,
metros) andados tem efeito hipnótico sobre mim, e provavelmente o ritmo uniforme imposto pelo
aparelho também contribui para
que nada além da pura atividade
sem sentido absorva a minha
atenção.
Por isso invento idas ao shopping: que o impulso artificial de
consumo justifique o dispêndio de
energia. Lembro-me de ter até
comprado um bom par de tênis
de caminhada numa loja do Pátio. O círculo se fecha, portanto.
Vejo agora que não é muito diferente de dar voltas numa pista.
Mas contribuo para o reaquecimento da economia.
Perdi, em todo caso, um evento
interessante que aconteceu no
shopping no sábado passado. Cerca de 150 estudantes da periferia
resolveram "invadir" o lugar. Cito a reportagem da Folha.
"Os manifestantes partiram em
caminhada do centro de São Paulo, sede da Educafro, entidade
que organizou o "happening" no
shopping. Durante o trajeto, entoaram músicas como "burguesia
do shopping/ viemos em paz/ queremos inclusão/ e nada mais". O
objetivo era chamar a atenção
para a exclusão dos negros, com
foco na questão do emprego."
Chegando ao shopping, fizeram
uma espécie de "pesquisa de mercado". Entravam em cada loja
perguntando quantos negros ou
mulatos trabalhavam ali.
Achei a iniciativa simpática e
certeira; e tudo indica que foi conduzida sem agressividade. Chamar alguém de "burguês do shopping" pode não ser exatamente
um elogio, mas o objetivo da manifestação era defender oportunidades iguais de emprego, e não
expulsar-nos de nosso habitat.
Os shoppings são locais estratégicos para discussões desse tipo.
Tratando-se de espaços simultaneamente públicos e privados,
admitem, em tese, a presença de
qualquer pessoa... mas, na prática, nem todo mundo acaba podendo entrar. Na época do velho
liberalismo burguês do século 19,
o mesmo devia acontecer com as
ruas de comércio chique dos
grandes centros urbanos. O espaço público nunca é totalmente público em sociedades desiguais.
Num país onde as desigualdades são extremas, como o Brasil,
espaços abertos e democráticos
como a velha e boa praça pública
logo se tornam pouco convidativos para o consumidor. Em São
Paulo, o caso do parque da Luz
mereceria um estudo antropológico: em comunicação direta com
a Pinacoteca e nas imediações da
cracolândia, é disputado palmo a
palmo pelo lumpesinato e pela
elite cultural.
Não assisti ao "happening" do
Pátio no sábado passado, mas estava justamente num dos raros
espaços de inclusão social da cidade. Tinha ido ver uma peça no
teatro do Sesi, em plena avenida
Paulista. É de graça. Você tem de
entrar na fila uma hora e meia
antes do espetáculo.
Fiquei ali, surpreendido com
minha situação absolutamente
minoritária: tratava-se de um público muito jovem e, em grande
parte, não-branco, acostumado
àquela rotina de senhas, filas e esperas. Ninguém estava de mau
humor, o que é raro em São Paulo; nem mesmo eu, o que também
tende a ser raro quando saio de
casa.
Mas houve um momento em
que o inconformismo tomou conta daquela fila gigantesca. O espetáculo estava a ponto de começar.
Todo o público se concentrara no
vestíbulo do teatro sem que a fila
se desorganizasse em nada. Dobrou-se apenas sobre si mesma,
em ziguezagues, como se fosse o
intestino de um camelo.
Começou então a andar. Mas
algumas pessoas se distraíram e
continuaram paradas. O natural,
numa situação dessas, seria que
os mais espertos passassem à frente, atropelando tudo. Era fácil
cortar caminho, ignorando os
meandros da fila. Só que ninguém fez isso.
O que se fez foi armar uma alegre vaia de advertência aos que
estavam parados. Era tão complicado saber qual o lugar de cada
um naquela fila, que, mesmo com
a gritaria, algumas pessoas não
percebiam que tinha chegado a
própria vez. Mas já isso não importava: o prazer de caçoar dos
distraídos era maior do que o de
seguir adiante.
Fiquei pensando em qual teria
sido o motivo para um comportamento tão espontâneo, tão pouco
exclusivista, tão distante de nossa
habitual competitividade paulistana. É provável que, se cada um
tivesse pago o próprio ingresso, a
impaciência fosse maior. O medo
de sentir-se lesado, a belicosidade
na defesa dos próprios direitos de
consumidor, a sofreguidão por
obter um bom lugar superariam o
movimento de ruidosa e amigável tolerância com os distraídos.
A gratuidade do espetáculo
contribuiu, imagino, para que o
clima fosse mais fraterno, como o
de uma excursão escolar. Tratava-se, de todo modo, de um público que estava disposto a divertir-se com qualquer coisa. Por isso
mesmo, as primeiras cenas, os primeiros diálogos da peça, ainda
que normalíssimos, tiveram recepção entusiástica da platéia.
Algum tempo depois, contudo,
o encanto da situação se desfez. A
peça encenada tinha toques desconcertantes, modernos, surreais.
Ainda que gratuito, o espetáculo
não era de acesso fácil. Parte do
público começou a resmungar; o
bom humor tinha desaparecido.
No fim, todos se conformaram;
mas é como se a exclusão tivesse,
mais uma vez, ganhado a parada.
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