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São Paulo, quarta-feira, 05 de novembro de 2003

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MARCELO COELHO

Inclusão

Frequento muito o shopping Pátio Higienópolis. Fica perto de casa, dá para ir a pé. Recomendam-me caminhadas, e não gosto de andar sem objetivo. Dar voltas numa pista de corrida sob o sol acho impensável. Já tentei a esteira ergométrica, na esperança de conseguir ler durante o exercício. Não me concentro; o marcador da velocidade e dos quilômetros (melhor dizendo, metros) andados tem efeito hipnótico sobre mim, e provavelmente o ritmo uniforme imposto pelo aparelho também contribui para que nada além da pura atividade sem sentido absorva a minha atenção.
Por isso invento idas ao shopping: que o impulso artificial de consumo justifique o dispêndio de energia. Lembro-me de ter até comprado um bom par de tênis de caminhada numa loja do Pátio. O círculo se fecha, portanto. Vejo agora que não é muito diferente de dar voltas numa pista. Mas contribuo para o reaquecimento da economia.
Perdi, em todo caso, um evento interessante que aconteceu no shopping no sábado passado. Cerca de 150 estudantes da periferia resolveram "invadir" o lugar. Cito a reportagem da Folha.
"Os manifestantes partiram em caminhada do centro de São Paulo, sede da Educafro, entidade que organizou o "happening" no shopping. Durante o trajeto, entoaram músicas como "burguesia do shopping/ viemos em paz/ queremos inclusão/ e nada mais". O objetivo era chamar a atenção para a exclusão dos negros, com foco na questão do emprego."
Chegando ao shopping, fizeram uma espécie de "pesquisa de mercado". Entravam em cada loja perguntando quantos negros ou mulatos trabalhavam ali.
Achei a iniciativa simpática e certeira; e tudo indica que foi conduzida sem agressividade. Chamar alguém de "burguês do shopping" pode não ser exatamente um elogio, mas o objetivo da manifestação era defender oportunidades iguais de emprego, e não expulsar-nos de nosso habitat.
Os shoppings são locais estratégicos para discussões desse tipo. Tratando-se de espaços simultaneamente públicos e privados, admitem, em tese, a presença de qualquer pessoa... mas, na prática, nem todo mundo acaba podendo entrar. Na época do velho liberalismo burguês do século 19, o mesmo devia acontecer com as ruas de comércio chique dos grandes centros urbanos. O espaço público nunca é totalmente público em sociedades desiguais.
Num país onde as desigualdades são extremas, como o Brasil, espaços abertos e democráticos como a velha e boa praça pública logo se tornam pouco convidativos para o consumidor. Em São Paulo, o caso do parque da Luz mereceria um estudo antropológico: em comunicação direta com a Pinacoteca e nas imediações da cracolândia, é disputado palmo a palmo pelo lumpesinato e pela elite cultural.
Não assisti ao "happening" do Pátio no sábado passado, mas estava justamente num dos raros espaços de inclusão social da cidade. Tinha ido ver uma peça no teatro do Sesi, em plena avenida Paulista. É de graça. Você tem de entrar na fila uma hora e meia antes do espetáculo.
Fiquei ali, surpreendido com minha situação absolutamente minoritária: tratava-se de um público muito jovem e, em grande parte, não-branco, acostumado àquela rotina de senhas, filas e esperas. Ninguém estava de mau humor, o que é raro em São Paulo; nem mesmo eu, o que também tende a ser raro quando saio de casa.
Mas houve um momento em que o inconformismo tomou conta daquela fila gigantesca. O espetáculo estava a ponto de começar. Todo o público se concentrara no vestíbulo do teatro sem que a fila se desorganizasse em nada. Dobrou-se apenas sobre si mesma, em ziguezagues, como se fosse o intestino de um camelo.
Começou então a andar. Mas algumas pessoas se distraíram e continuaram paradas. O natural, numa situação dessas, seria que os mais espertos passassem à frente, atropelando tudo. Era fácil cortar caminho, ignorando os meandros da fila. Só que ninguém fez isso.
O que se fez foi armar uma alegre vaia de advertência aos que estavam parados. Era tão complicado saber qual o lugar de cada um naquela fila, que, mesmo com a gritaria, algumas pessoas não percebiam que tinha chegado a própria vez. Mas já isso não importava: o prazer de caçoar dos distraídos era maior do que o de seguir adiante.
Fiquei pensando em qual teria sido o motivo para um comportamento tão espontâneo, tão pouco exclusivista, tão distante de nossa habitual competitividade paulistana. É provável que, se cada um tivesse pago o próprio ingresso, a impaciência fosse maior. O medo de sentir-se lesado, a belicosidade na defesa dos próprios direitos de consumidor, a sofreguidão por obter um bom lugar superariam o movimento de ruidosa e amigável tolerância com os distraídos.
A gratuidade do espetáculo contribuiu, imagino, para que o clima fosse mais fraterno, como o de uma excursão escolar. Tratava-se, de todo modo, de um público que estava disposto a divertir-se com qualquer coisa. Por isso mesmo, as primeiras cenas, os primeiros diálogos da peça, ainda que normalíssimos, tiveram recepção entusiástica da platéia.
Algum tempo depois, contudo, o encanto da situação se desfez. A peça encenada tinha toques desconcertantes, modernos, surreais. Ainda que gratuito, o espetáculo não era de acesso fácil. Parte do público começou a resmungar; o bom humor tinha desaparecido. No fim, todos se conformaram; mas é como se a exclusão tivesse, mais uma vez, ganhado a parada.


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