São Paulo, sábado, 05 de novembro de 2005

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FERNANDO GABEIRA

Com Saint-Hilaire nas montanhas do futuro

São Roque de Minas - Viajar com um livro de Saint-Hilaire pela serra da Canastra, em busca das nascentes do rio São Francisco, é uma boa lição. De paciência em primeiro lugar, pois ele levou semanas para alcançar a pé a cachoeira Casca d'Anta. Nós a avistamos em cinco minutos de vôo.
Outra importante lição é a da humildade. Saint-Hilaire examinou a serra da Canastra de longe, conferiu sua forma com o nome que lhe era dado e concluiu que realmente parecia um baú. Sua cultura geográfica, capacidade de se orientar e a sorte de passar pelo período das cheias, quando as cachoeiras desenham suas coreografias de conjunto pelas pedras, tudo isso torna sua viagem inigualável.
Avançar pedra por pedra, paisagem por paisagem, pássaro por pássaro, flor por flor é de causar inveja ao apressado viajante do século 21. Além disso, a serra da Canastra não é apenas a maravilha da descoberta.
Ali foi criado um parque nacional de 200 mil hectares, em 1972, em pleno governo militar. Foi um acontecimento traumático para os habitantes da serra. Muitos foram desalojados e a polícia chegou a metralhar latões de leite, para apressar a saída. Apenas 70 mil hectares do parque foram usados para fins de conservação. Ele precisa, no entanto, ser redesenhado com o apoio dos habitantes da Canastra. É a única forma de tocarmos um parque nacional, conquistando a amizade dos seus vizinhos.
Saint-Hilaire, com sua curiosidade, percebeu no século 19 como toda esta região é importante. Não apenas o São Francisco nasce das montanhas, mas rios como o Araguari fazem com que a água suba para o nordeste e desça para o sul com abundância.
Há inúmeras nascentes, a sensação que temos é a de que água brota de todos os lados.
Se estivéssemos no século passado, poderíamos dizer que estávamos diante de algo tão importante como a descoberta de uma região com petróleo. Com a diferença de que esta pode durar para sempre, se soubermos manejá-la com os olhos no futuro.
O redesenho do parque não depende apenas da indispensável amizade dos vizinhos. Teremos de formular também um projeto de desenvolvimento sustentável que leve em conta as riquezas naturais e culturais da região.
Sobre outras riquezas além da água, basta, mesmo sem o ritmo cuidadoso de Saint-Hilaire, olhar para os lados. Num trecho de cem quilômetros, encontramos dez espécies diferentes de pássaros, de gaviões a canários da terra, passando por papagaios, sanhaços, passo-preto, pica-pau e joão-de-barro.
A região está sendo freqüentada por observadores de pássaros de todo o mundo. Eles chegam com seus equipamentos, acordam cedo e examinam os novos pássaros ou mesmo indagam sobre a morada do urubu-rei, sobre o pica-pau-de-cabeça-vermelha e outras raridades.
Os observadores de pássaros são um público certo, mas é preciso preparar as pousadas montanhesas para seus hábitos -um deles é o de tomar café da manhã.
A riqueza da diversidade não se restringe aos pássaros. Fotografava inocentemente a margarida, quando alguém me disse que havia 300 espécies diferentes de margarida, 80 espécies diferentes de quaresmeiras.
A explosão de vida é tão grande que, às vezes, à noite, volta-se contra o viajante. Basta acender uma luz numa pousada no mato (existem umas 50 na região) e somos invadidos por uma multidão de insetos, que se acumulam formando massas volumosas no chão. No corredor de alguns hotéis, sente-se pela manhã que a noite foi iluminada foi um verdadeiro massacre para os besouros que jazem de patas para cima.
A grande força cultural e, potencialmente, econômica da região é o queijo da Canastra, feito com leite cru. A legislação brasileira, baseada na norte-americana, só admite o queijo de leite pasteurizado. Na Europa é diferente. Comemos o golda da Holanda e o ementhal suíço porque, nesses países e, sobretudo, na França, os queijos são certificados e produzidos sob rígido controle sanitário.
Alguns produtores da Canastra estão prontos para isto. Falta mover a máquina burocrática a seu favor, algo tão pesado como as próprias montanhas.
Pesquisadores convergem para a Canastra, sobretudo com projetos especiais como do lobo-guará, uma espécie considerada sob perigo. Há mais ou menos 70 exemplares nessas montanhas, alguns monitorados.
Muitas vezes ouvimos uivos de madrugada -são eles. Gostam de uma planta lilás, chamada lobeira e, muitas vezes, sabe-se que passaram pelo lugar pelas sementes de lobeira no cocô que deixam para trás.
Cinco dias de viagem pela serra da Canastra me obrigam a voltar a Saint-Hilaire para conferir minhas anotações de estudante. Tenho inveja de seus desenhos não só porque demandam habilidade. Pedem mais contemplação, refazem parte do objeto para melhor entendê-lo.
Isso é o que a serra da Canastra está pedindo agora: muita contemplação, estudo e debate com os montanheses para garantirmos uma região estratégica. Alguns turistas perguntam: por que criaram um parque depois que tudo foi desmatado?
Saint-Hilaire, observando a grama verde sobre a pedra cinza, daria a resposta para isso. Não é uma região exuberante como uma floresta tropical. Mas, por baixo das aparências, em certos trechos, é mais rica do que a própria Mata Atlântica.
Há muito trabalho pela frente. Mas o êxtase nos enche de culpa e chegamos a duvidar se isso é mesmo trabalho, tão grande o prazer de olhar as cachoeiras, ouvir os pássaros, almoçar com a família Bernardes no Vale da Babilônia. A vida de Saint-Hilaire era mais dura na Canastra. No entanto, divertiu-se muito mais do que nós.
contato@gabeira.com.br


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