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FERNANDO GABEIRA
Com Saint-Hilaire nas montanhas do futuro
São Roque de Minas - Viajar
com um livro de Saint-Hilaire pela serra da Canastra, em
busca das nascentes do rio São
Francisco, é uma boa lição. De
paciência em primeiro lugar, pois
ele levou semanas para alcançar
a pé a cachoeira Casca d'Anta.
Nós a avistamos em cinco minutos de vôo.
Outra importante lição é a da
humildade. Saint-Hilaire examinou a serra da Canastra de longe,
conferiu sua forma com o nome
que lhe era dado e concluiu que
realmente parecia um baú. Sua
cultura geográfica, capacidade de
se orientar e a sorte de passar pelo
período das cheias, quando as cachoeiras desenham suas coreografias de conjunto pelas pedras,
tudo isso torna sua viagem inigualável.
Avançar pedra por pedra, paisagem por paisagem, pássaro por
pássaro, flor por flor é de causar
inveja ao apressado viajante do
século 21. Além disso, a serra da
Canastra não é apenas a maravilha da descoberta.
Ali foi criado um parque nacional de 200 mil hectares, em 1972,
em pleno governo militar. Foi um
acontecimento traumático para
os habitantes da serra. Muitos foram desalojados e a polícia chegou a metralhar latões de leite,
para apressar a saída. Apenas 70
mil hectares do parque foram
usados para fins de conservação.
Ele precisa, no entanto, ser redesenhado com o apoio dos habitantes da Canastra. É a única forma de tocarmos um parque nacional, conquistando a amizade
dos seus vizinhos.
Saint-Hilaire, com sua curiosidade, percebeu no século 19 como
toda esta região é importante.
Não apenas o São Francisco nasce
das montanhas, mas rios como o
Araguari fazem com que a água
suba para o nordeste e desça para
o sul com abundância.
Há inúmeras nascentes, a sensação que temos é a de que água
brota de todos os lados.
Se estivéssemos no século passado, poderíamos dizer que estávamos diante de algo tão importante como a descoberta de uma região com petróleo. Com a diferença de que esta pode durar para
sempre, se soubermos manejá-la
com os olhos no futuro.
O redesenho do parque não depende apenas da indispensável
amizade dos vizinhos. Teremos
de formular também um projeto
de desenvolvimento sustentável
que leve em conta as riquezas naturais e culturais da região.
Sobre outras riquezas além da
água, basta, mesmo sem o ritmo
cuidadoso de Saint-Hilaire, olhar
para os lados. Num trecho de cem
quilômetros, encontramos dez espécies diferentes de pássaros, de
gaviões a canários da terra, passando por papagaios, sanhaços,
passo-preto, pica-pau e joão-de-barro.
A região está sendo freqüentada por observadores de pássaros
de todo o mundo. Eles chegam
com seus equipamentos, acordam
cedo e examinam os novos pássaros ou mesmo indagam sobre a
morada do urubu-rei, sobre o pica-pau-de-cabeça-vermelha e outras raridades.
Os observadores de pássaros são
um público certo, mas é preciso
preparar as pousadas montanhesas para seus hábitos -um deles
é o de tomar café da manhã.
A riqueza da diversidade não se
restringe aos pássaros. Fotografava inocentemente a margarida,
quando alguém me disse que havia 300 espécies diferentes de
margarida, 80 espécies diferentes
de quaresmeiras.
A explosão de vida é tão grande
que, às vezes, à noite, volta-se
contra o viajante. Basta acender
uma luz numa pousada no mato
(existem umas 50 na região) e somos invadidos por uma multidão
de insetos, que se acumulam formando massas volumosas no
chão. No corredor de alguns hotéis, sente-se pela manhã que a
noite foi iluminada foi um verdadeiro massacre para os besouros
que jazem de patas para cima.
A grande força cultural e, potencialmente, econômica da região é o queijo da Canastra, feito
com leite cru. A legislação brasileira, baseada na norte-americana, só admite o queijo de leite
pasteurizado. Na Europa é diferente. Comemos o golda da Holanda e o ementhal suíço porque,
nesses países e, sobretudo, na
França, os queijos são certificados
e produzidos sob rígido controle
sanitário.
Alguns produtores da Canastra
estão prontos para isto. Falta mover a máquina burocrática a seu
favor, algo tão pesado como as
próprias montanhas.
Pesquisadores convergem para
a Canastra, sobretudo com projetos especiais como do lobo-guará,
uma espécie considerada sob perigo. Há mais ou menos 70 exemplares nessas montanhas, alguns
monitorados.
Muitas vezes ouvimos uivos de
madrugada -são eles. Gostam
de uma planta lilás, chamada lobeira e, muitas vezes, sabe-se que
passaram pelo lugar pelas sementes de lobeira no cocô que deixam
para trás.
Cinco dias de viagem pela serra
da Canastra me obrigam a voltar
a Saint-Hilaire para conferir minhas anotações de estudante. Tenho inveja de seus desenhos não
só porque demandam habilidade.
Pedem mais contemplação, refazem parte do objeto para melhor
entendê-lo.
Isso é o que a serra da Canastra
está pedindo agora: muita contemplação, estudo e debate com
os montanheses para garantirmos uma região estratégica. Alguns turistas perguntam: por que
criaram um parque depois que
tudo foi desmatado?
Saint-Hilaire, observando a
grama verde sobre a pedra cinza,
daria a resposta para isso. Não é
uma região exuberante como
uma floresta tropical. Mas, por
baixo das aparências, em certos
trechos, é mais rica do que a própria Mata Atlântica.
Há muito trabalho pela frente.
Mas o êxtase nos enche de culpa e
chegamos a duvidar se isso é mesmo trabalho, tão grande o prazer
de olhar as cachoeiras, ouvir os
pássaros, almoçar com a família
Bernardes no Vale da Babilônia.
A vida de Saint-Hilaire era mais
dura na Canastra. No entanto,
divertiu-se muito mais do que
nós.
contato@gabeira.com.br
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