São Paulo, domingo, 05 de novembro de 2006

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FERREIRA GULLAR

Idade do óbvio


Só importa o que se entrega logo, o óbvio. O complexo deve ser descartado

VIVEMOS NA idade do moderno, do pós-moderno, do sempre moderno. O tempo da novidade, da incessante novidade. Da rapidez, do efêmero, do que não dura. O que dura, o que permanece envelhece, enferruja, mofa, apodrece.
A única maneira de impedir que uma coisa envelheça é impedindo-a de durar. Não importa o significado, a complexidade, o difícil de apreender, o que não se entrega fácil, à primeira vista. Só importa o que se entrega logo, o óbvio. O complexo, o difícil de explicar, deve ser descartado: esta é a idade do óbvio.
O que dura atravanca a venda, inibe o mercado. A duração é uma espécie de maldição: a geladeira dura mais do que deve, o automóvel dura mais do que deve, até as roupas, os sapatos, os móveis.
Por isso há que torná-los obsoletos, descartáveis, a curto prazo. A publicidade, motor da modernidade, se encarrega disso. É a obsolescência planejada e imposta. Gente fina tem que andar no carro do ano. E o carro do ano não é (aparentemente) igual ao do outro ano; é mais moderno, com desenho mais "avançado", é novo.
E, de todas as fábricas, para todas as lojas, saem a geladeira do ano, a enceradeira do ano, televisão do ano, o celular do ano; ou do semestre? ou do mês? ou da semana?
Vivemos no mundo do novo. Por todo o país, por todos os países, centenas, milhares de especialistas trabalham em função do novo. Para encher as lojas de mercadorias novas e manter o consumo alto, para a alegria dos fabricantes, dos vendedores, dos compradores, dos arrecadadores de impostos. Vivemos no reino da felicidade, todos movidos pela euforia do novo.
Sim, porque o que dura reduz o consumo, inibe a venda e impede que se produzam novas mercadorias. O utensílio velho obstrui a entrada do utensílio novo em sua casa. Logo, preservar o utensílio velho é uma atitude contrária ao mercado, contrária à produção e ao crescimento econômico; é uma atitude antipatriótica. Amar o velho é um pecado anticapitalista. O capitalismo ama o novo.
E, se tudo é novo, do automóvel ao chinelo, por que não será também nova a arte? Sim, a arte sempre se alimentou do novo, só que, agora, como nas mercadorias, também aqui o novo deve ser veloz e fugaz.
Já havia me dado conta disso quando, em 1960, propus a Hélio Oiticica que fizéssemos uma exposição-relâmpago, que começaria às 17h e terminaria às 18h. Cada obra teria, dentro, uma carga explosiva e, findo o prazo da mostra, pediríamos aos convidados que se retirassem; um de nós acionaria o detonador, e todas as obras iriam pelos ares. Naquela época, eu era um vanguardista sarcástico e defendia a tese de que a verdadeira obra de arte era efêmera, enquanto o que permanecia nos museus eram "drogas de arte".
Diga-se, a bem da verdade, que o jovem Oiticica ouviu essa minha proposta suando frio e, após um instante de hesitação, manifestou sua discordância: não estava disposto a destruir suas obras.
Pois vejam como são as coisas, pouco depois, eu abandonaria o radicalismo vanguardista, enquanto Hélio Oiticica o levaria às últimas conseqüências, com seus bólides e parangolés. Mas voltemos ao fio da meada.
O novo é, por definição, efêmero. Nada pode permanecer novo porque a sua própria duração o torna velho. A arte, que sempre criou o novo, não o tinha como objetivo mas, sim, como necessidade. Giotto, quando pintou "O Horto", quis pintar uma cena bíblica e, ao pintá-la, inovou; o mesmo pode-se dizer de Rembrandt ao pintar a "Ronda Noturna": renovou a pintura ao reafirmá-la. O valor que afirmam, Giotto e Rembrandt, não é o novo, que é fugaz, mas a arte, que é permanente, porque, como disse Pablo Picasso, "toda arte é atual".
E assim foi que o permanente se tornou obsoleto, e a busca do novo se tornou permanente. Porque nenhuma novidade se mantém nova, a busca da novidade se revelou uma tarefa insana, que destruiu a linguagem da arte, uma vez que a busca incessante do novo torna qualquer sistema (e a linguagem artística é um sistema) um entrave.
E, assim, agora sem qualquer entrave, o artista está livre para atender à obsessão da novidade. Logo o objeto se revela caduco, e o artista, sem os limites do trabalho e da obra, torna-se performático: exibe-se para a mídia, ela, também, sequiosa de novidades.
Mas, enquanto isso, longe do turbilhão da moda, um artista antiquado realiza a obra que, passada a tropelia, nos devolverá a emoção que a arte possibilita reviver em sossego.


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