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FERREIRA GULLAR
Idade do óbvio
Só importa o que se
entrega logo, o óbvio. O complexo deve ser descartado
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VIVEMOS NA idade do moderno,
do pós-moderno, do sempre
moderno. O tempo da novidade, da incessante novidade. Da rapidez, do efêmero, do que não dura.
O que dura, o que permanece envelhece, enferruja, mofa, apodrece.
A única maneira de impedir que
uma coisa envelheça é impedindo-a
de durar. Não importa o significado,
a complexidade, o difícil de apreender, o que não se entrega fácil, à primeira vista. Só importa o que se entrega logo, o óbvio. O complexo, o difícil de explicar, deve ser descartado:
esta é a idade do óbvio.
O que dura atravanca a venda, inibe o mercado. A duração é uma espécie de maldição: a geladeira dura
mais do que deve, o automóvel dura
mais do que deve, até as roupas, os
sapatos, os móveis.
Por isso há que torná-los obsoletos, descartáveis, a curto prazo. A
publicidade, motor da modernidade, se encarrega disso. É a obsolescência planejada e imposta. Gente
fina tem que andar no carro do ano.
E o carro do ano não é (aparentemente) igual ao do outro ano; é mais
moderno, com desenho mais "avançado", é novo.
E, de todas as fábricas, para todas
as lojas, saem a geladeira do ano, a
enceradeira do ano, televisão do
ano, o celular do ano; ou do semestre? ou do mês? ou da semana?
Vivemos no mundo do novo. Por
todo o país, por todos os países, centenas, milhares de especialistas trabalham em função do novo. Para encher as lojas de mercadorias novas e
manter o consumo alto, para a alegria dos fabricantes, dos vendedores, dos compradores, dos arrecadadores de impostos. Vivemos no reino da felicidade, todos movidos pela
euforia do novo.
Sim, porque o que dura reduz o
consumo, inibe a venda e impede
que se produzam novas mercadorias. O utensílio velho obstrui a entrada do utensílio novo em sua casa.
Logo, preservar o utensílio velho é
uma atitude contrária ao mercado,
contrária à produção e ao crescimento econômico; é uma atitude
antipatriótica. Amar o velho é um
pecado anticapitalista. O capitalismo ama o novo.
E, se tudo é novo, do automóvel ao
chinelo, por que não será também
nova a arte? Sim, a arte sempre se
alimentou do novo, só que, agora,
como nas mercadorias, também
aqui o novo deve ser veloz e fugaz.
Já havia me dado conta disso
quando, em 1960, propus a Hélio Oiticica que fizéssemos uma exposição-relâmpago, que começaria às
17h e terminaria às 18h. Cada obra
teria, dentro, uma carga explosiva e,
findo o prazo da mostra, pediríamos
aos convidados que se retirassem;
um de nós acionaria o detonador, e
todas as obras iriam pelos ares. Naquela época, eu era um vanguardista
sarcástico e defendia a tese de que a
verdadeira obra de arte era efêmera,
enquanto o que permanecia nos
museus eram "drogas de arte".
Diga-se, a bem da verdade, que o
jovem Oiticica ouviu essa minha
proposta suando frio e, após um instante de hesitação, manifestou sua
discordância: não estava disposto a
destruir suas obras.
Pois vejam como são as coisas,
pouco depois, eu abandonaria o radicalismo vanguardista, enquanto
Hélio Oiticica o levaria às últimas
conseqüências, com seus bólides e
parangolés. Mas voltemos ao fio da
meada.
O novo é, por definição, efêmero.
Nada pode permanecer novo porque a sua própria duração o torna
velho. A arte, que sempre criou o novo, não o tinha como objetivo mas,
sim, como necessidade. Giotto,
quando pintou "O Horto", quis pintar uma cena bíblica e, ao pintá-la,
inovou; o mesmo pode-se dizer de
Rembrandt ao pintar a "Ronda Noturna": renovou a pintura ao reafirmá-la. O valor que afirmam, Giotto e
Rembrandt, não é o novo, que é fugaz, mas a arte, que é permanente,
porque, como disse Pablo Picasso,
"toda arte é atual".
E assim foi que o permanente se
tornou obsoleto, e a busca do novo
se tornou permanente. Porque nenhuma novidade se mantém nova, a
busca da novidade se revelou uma
tarefa insana, que destruiu a linguagem da arte, uma vez que a busca incessante do novo torna qualquer sistema (e a linguagem artística é um
sistema) um entrave.
E, assim, agora sem qualquer entrave, o artista está livre para atender à obsessão da novidade. Logo o
objeto se revela caduco, e o artista,
sem os limites do trabalho e da obra,
torna-se performático: exibe-se para a mídia, ela, também, sequiosa de
novidades.
Mas, enquanto isso, longe do turbilhão da moda, um artista antiquado realiza a obra que, passada a tropelia, nos devolverá a emoção que a
arte possibilita reviver em sossego.
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