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Comentário/cinema/"A Via Láctea"
Lina Chamie cria um céu de estrelas na selva escura
CARLOS AUGUSTO CALIL
ESPECIAL PARA A FOLHA
Aparentemente uma
simples história de
amor entre um homem
maduro desencantado e uma
moça pronta para conquistar o
território afetivo, "A Via Láctea", de Lina Chamie, é um belo
filme sobre a morte.
A narrativa é trabalhada em
fragmentos e temporalidades,
cuja habilidosa manipulação
demonstra a enorme evolução
da diretora desde seu primeiro
filme, "Tônica Dominante"
(2001). Outra característica
marcante em "A Via Láctea" é a
amorosa descoberta da cidade
inóspita, em ângulos e locações
improváveis. Ela se dá por impregnação poética.
O trunfo de Lina se encontra
na consciência da linguagem.
Versada em poesia e música,
além do cinema, lê a poesia nas
suas duas vertentes: a propriamente literária, de que faz uso
com grande discernimento
-são poderosas as referências
a Dante, Drummond, Eluard e
Mário Chamie-, e a visual. Até
os créditos desse filme, a cargo
de Carla Caffé, constituem uma
obra à parte, de apurado rigor.
Lina procura a sua tonalidade no contraste entre a música
dramática de Schubert e a ironia melancólica da infância
triste de Erik Satie. O espectador se compraz na beleza inefável da dança das mãos, de um
olhar compartilhado, de um
verso vivido, de um acorde insuspeito, de um canto remoto
da cidade.
A fragilidade humana, que se
apega à manifestação de afeto,
à promessa amorosa, não está a
salvo da contingência e do acaso, da instabilidade fugaz de
instantes de improvável equilíbrio. Quando ele se rompe, interroga-se o sentido da vida. É
dele que fala o poeta maior, ao
defrontar-se "no meio do caminho" da sua vida.
Como o poeta, Heitor (Marco
Ricca) mergulha na "selva oscura" para encontrar-se consigo mesmo. A visita ao Inferno é
a mais bem realizada seqüência
do filme de Lina Chamie. A fotografia de Kátia Coelho, sempre cúmplice, aqui se supera na
construção de uma imagem de
dilaceramento antes interior
que externo. E o sacrifício da
cadelinha alude à inevitável
queda, ao fim do sentimento
inocente.
Com "A Via Láctea", Lina
Chamie nos brinda com um filme ao mesmo tempo comovente e culto, sem afetação. O público bem o merecia.
CARLOS AUGUSTO CALIL é professor de cinema da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e secretário municipal da
Cultura de São Paulo.
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