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NELSON ASCHER
O canto das sereias
O grosso do que se ouve no mundo é produzido por poucas dezenas de criadores afortunados
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A MAIORIA dos ouvintes atuais
de música provavelmente
nunca pôs um LP num toca-discos e, se sabe de sua existência,
deve ser graças a algum filme de
época. Em breve, o CD também será
memória remota, substituído por
iPods e demais dispositivos digitais.
E, no entanto, a reprodução, primeiro mecânica e, depois, eletrônica, da
música é fenômeno recente, datando da segunda metade do século 19.
Antes disso, a experiência musical
era pública. A cada público, segundo
seus gostos e cultura, correspondiam diferentes tipos de música que,
no planeta, eram tão variados quanto os povos que o habitavam, e a variedade musical separava entre si as populações não menos do que a diversidade lingüística.
Se a música tradicional praticamente desapareceu e a erudita ocidental tomou rumos que a distanciaram do grande público, uma nova
música sintética, facilmente inteligível e associada intimamente a seus
meios de reprodução conquistou o
planeta. Assim, o processo conhecido como globalização já mostrou
um resultado absolutamente bem-sucedido: trata-se da música popular industrial ou de massa. Nada
transpõe tão bem, com tanta facilidade, fronteiras nacionais, ideológicas, religiosas etc. como ela.
A cultura e seus produtos, porém,
não existem num vácuo. A música
de massas corresponde a uma demanda e esta, por seu turno, fala-nos
a respeito de seu público. A homogeneidade musical indicaria, em princípio, uma homogeneidade real ou
potencial de seus ouvintes. Será que
é através do rock que se está construindo uma espécie de cidadania
planetária acima das divisões étnicas, culturais e outras que sempre
foram as grandes geradoras de conflitos? O jornalista Thomas Friedman disse certa vez que dois países
que tivessem McDonald's dificilmente entrariam em guerra um
com o outro. Será que isso vale para
dois grupos ou populações que ouçam Madonna ou Michael Jackson?
Tudo indica que não. Afinal, pessoas que amam o mesmo esporte,
futebol, podem se massacrar no estádio porque torcem para times diferentes. Membros de nossa espécie
nunca deixarão de achar desculpas
para se matarem entre si. E, ainda
assim, a homogeneidade musical sugere outras. Mais do que em suas letras, é no modo como ela é fruída ou
consumida que a canção revela a natureza de sua audiência.
Por exemplo, desde a aparição do
walkman e do reprodutor de MP3,
as pessoas podem, no meio da multidão, ouvir canções como se estivessem sozinhas. Individualismo? Afasia? Não, pois todas ouvem algo produzido aos milhões e para milhões.
As letras abordam tais ou quais temas padrão, mas elas tampouco são
muito relevantes, pois gente que
nem mesmo entende sua língua ouve as canções com igual dedicação e
prazer.
Como na sociedade tradicional,
mas de maneira mais vaga, a música
industrial leva o indivíduo isolado a
se sentir participante de uma comunidade maior que, no caso discutido,
é a das atitudes, do estilo de vida, das
crenças mais ou menos genéricas. A
experiência mais intensa de confraternização da qual a maioria dos
contemporâneos participou ou participará na vida é um concerto de
rock, onde o que conta é a sintonia
comum com um determinado ritmo, a repetição de refrãos que nem
chegam a ser slogans, a rendição individual a uma massa coerente em
cujo balanço circula uma só mensagem significativa: "we are the world,
we are the children".
Não há como negá-lo: a possibilidade de que uma canção, uma banda, um gênero alcancem parcela significativa da humanidade implica
um nivelamento por baixo, ou seja,
quanto mais ouvintes, maior a homogeneidade, menor a complexidade. Se há inúmeros cantores, instrumentistas e compositores, é apenas
porque o prêmio é imenso, um prêmio que poucos conquistarão. O
grosso do que se ouve no mundo inteiro é produzido por poucas dezenas de criadores afortunados que, a
rigor intercambiáveis, devem muito
de seu sucesso à sorte e ao acaso.
Como a canção se converteu na
principal experiência comum da espécie, ela se tornou também um modelo do que se pode comunicar e,
quem sabe em última instância, do
que a maioria está disposta a pensar.
Sua forma veicula uma mensagem
que reafirma tanto uma fraternidade elementar, rítmica, como a ausência de diferenças irredutíveis ou
conflituosas entre indivíduos e/ou
grupos. É quase irresistível traduzir
politicamente tal mensagem utópica, mas, como Ulisses já sabia, quanto mais sedutor o canto das sereias,
mais próximos estão os recifes e
mais certo é o naufrágio.
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