São Paulo, segunda-feira, 05 de novembro de 2007

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NELSON ASCHER

O canto das sereias


O grosso do que se ouve no mundo é produzido por poucas dezenas de criadores afortunados

A MAIORIA dos ouvintes atuais de música provavelmente nunca pôs um LP num toca-discos e, se sabe de sua existência, deve ser graças a algum filme de época. Em breve, o CD também será memória remota, substituído por iPods e demais dispositivos digitais. E, no entanto, a reprodução, primeiro mecânica e, depois, eletrônica, da música é fenômeno recente, datando da segunda metade do século 19.
Antes disso, a experiência musical era pública. A cada público, segundo seus gostos e cultura, correspondiam diferentes tipos de música que, no planeta, eram tão variados quanto os povos que o habitavam, e a variedade musical separava entre si as populações não menos do que a diversidade lingüística.
Se a música tradicional praticamente desapareceu e a erudita ocidental tomou rumos que a distanciaram do grande público, uma nova música sintética, facilmente inteligível e associada intimamente a seus meios de reprodução conquistou o planeta. Assim, o processo conhecido como globalização já mostrou um resultado absolutamente bem-sucedido: trata-se da música popular industrial ou de massa. Nada transpõe tão bem, com tanta facilidade, fronteiras nacionais, ideológicas, religiosas etc. como ela.
A cultura e seus produtos, porém, não existem num vácuo. A música de massas corresponde a uma demanda e esta, por seu turno, fala-nos a respeito de seu público. A homogeneidade musical indicaria, em princípio, uma homogeneidade real ou potencial de seus ouvintes. Será que é através do rock que se está construindo uma espécie de cidadania planetária acima das divisões étnicas, culturais e outras que sempre foram as grandes geradoras de conflitos? O jornalista Thomas Friedman disse certa vez que dois países que tivessem McDonald's dificilmente entrariam em guerra um com o outro. Será que isso vale para dois grupos ou populações que ouçam Madonna ou Michael Jackson?
Tudo indica que não. Afinal, pessoas que amam o mesmo esporte, futebol, podem se massacrar no estádio porque torcem para times diferentes. Membros de nossa espécie nunca deixarão de achar desculpas para se matarem entre si. E, ainda assim, a homogeneidade musical sugere outras. Mais do que em suas letras, é no modo como ela é fruída ou consumida que a canção revela a natureza de sua audiência.
Por exemplo, desde a aparição do walkman e do reprodutor de MP3, as pessoas podem, no meio da multidão, ouvir canções como se estivessem sozinhas. Individualismo? Afasia? Não, pois todas ouvem algo produzido aos milhões e para milhões. As letras abordam tais ou quais temas padrão, mas elas tampouco são muito relevantes, pois gente que nem mesmo entende sua língua ouve as canções com igual dedicação e prazer.
Como na sociedade tradicional, mas de maneira mais vaga, a música industrial leva o indivíduo isolado a se sentir participante de uma comunidade maior que, no caso discutido, é a das atitudes, do estilo de vida, das crenças mais ou menos genéricas. A experiência mais intensa de confraternização da qual a maioria dos contemporâneos participou ou participará na vida é um concerto de rock, onde o que conta é a sintonia comum com um determinado ritmo, a repetição de refrãos que nem chegam a ser slogans, a rendição individual a uma massa coerente em cujo balanço circula uma só mensagem significativa: "we are the world, we are the children".
Não há como negá-lo: a possibilidade de que uma canção, uma banda, um gênero alcancem parcela significativa da humanidade implica um nivelamento por baixo, ou seja, quanto mais ouvintes, maior a homogeneidade, menor a complexidade. Se há inúmeros cantores, instrumentistas e compositores, é apenas porque o prêmio é imenso, um prêmio que poucos conquistarão. O grosso do que se ouve no mundo inteiro é produzido por poucas dezenas de criadores afortunados que, a rigor intercambiáveis, devem muito de seu sucesso à sorte e ao acaso.
Como a canção se converteu na principal experiência comum da espécie, ela se tornou também um modelo do que se pode comunicar e, quem sabe em última instância, do que a maioria está disposta a pensar. Sua forma veicula uma mensagem que reafirma tanto uma fraternidade elementar, rítmica, como a ausência de diferenças irredutíveis ou conflituosas entre indivíduos e/ou grupos. É quase irresistível traduzir politicamente tal mensagem utópica, mas, como Ulisses já sabia, quanto mais sedutor o canto das sereias, mais próximos estão os recifes e mais certo é o naufrágio.


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