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CONTARDO CALLIGARIS
Na passarela de Miss Mundo, lá vamos nós
A Nigéria é um país dividido entre cristãos modernizadores e muçulmanos que têm
pouca simpatia pelos charmes da
modernidade ocidental. Os dois
grupos se odeiam.
Em 2001, a nigeriana Agbani
Darego, estudante de computação, foi eleita Miss Mundo, graças
à elegância de seu porte e às suas
qualidades intelectuais. Com isso,
a Nigéria ganhou o direito de hospedar o concurso. O governo nigeriano (o atual presidente é cristão) decidiu promover o evento
de 2002 para mostrar ao mundo
que a Nigéria se moderniza. A comunidade muçulmana não gostou. Primeiro, várias candidatas
protestaram contra a aplicação
da lei islâmica na Nigéria e pediram que fosse abolida a pena de
apedrejamento para mulheres
acusadas de adultério. Também a
data escolhida (7 de dezembro,
no começo do Ramadã, mês sagrado dos muçulmanos) pareceu
uma provocação. Enfim, como
aceitar uma competição baseada
em qualidades que o Islã mais
conservador não preza nas mulheres, como a sedução, a independência e a formação intelectual e profissional?
Gota que fez transbordar o vaso, uma jovem jornalista nigeriana (de novo, uma mulher, mas
onde já se viu?), ao comentar a
chegada das moças, na semana
retrasada, perguntou: "O que o
profeta Muhammad pensaria do
concurso?", e brincou: "Quem sabe ele escolhesse uma mulher entre as jovens pretendentes".
Blasfêmia! As autoridades religiosas do Estado de Zamfara decretaram uma "fatwa" contra a
jovem, que já está em fuga pelo
mundo, alvo designado de assassinato por qualquer fiel muçulmano que goste da idéia. E a rua
pegou fogo. Balanço: mais de 215
mortos, 1.100 feridos, 22 igrejas e
oito mesquitas destruídas.
O páreo mudou-se para a Inglaterra. Aqui, surpresa, as concorrentes foram acolhidas por outros
protestos. Germaine Greer, feminista veterana, fez eco às autoridades islâmicas de Zamfara, declarando que era horrível que o
concurso ocorresse em Londres.
Mesmo sem aventurar-se em
críticas ideológicas, é fácil zombar
de Miss Mundo: os concursos de
beleza parecem puras futilidades.
Os organizadores deveriam ter
desistido na hora do primeiro bofetão na rua, não é?
O problema é que, pensando
bem, não estou tão certo da futilidade do concurso de Miss Mundo.
Há traços e manifestações de nossa cultura que podem nos incutir
uma espécie de vergonha. Com isso, não reconhecemos que são
parte integrante e necessária de
nossa maneira de ser.
Um exemplo. A liberdade de expressão é crucial na nossa cultura:
acreditamos no indivíduo como
valor, portanto defendemos a liberdade de cada um se expressar
livremente.
Essa atitude é fácil quando se
trata de proteger uma revista militante ou mesmo (espero) o colunista de um diário. Mas hesitamos quando se trata de defender
palavras e imagens que não têm,
aparentemente, funções nobres
ou superiores. Pelo jornal da CUT
desceremos nas ruas e enfrentaremos polícia a cavalo e bombas de
gás lacrimogêneo. Será que faríamos o mesmo pelos anúncios eróticos da "Private" ou pelos cinemas pornográficos do centro? Na
hora de proteger a expressão das
fantasias eróticas, achamos que
essa é nossa parte acessória, envergonhada. No melhor dos casos,
nós a defendemos só para evitar
que a repressão estabeleça um
precedente do tipo: amanhã será
a vez da Folha. Dificilmente reconhecemos que a liberdade das
fantasias eróticas é um traço irrenunciável de nosso jeito de ser.
Ora, nossa subjetividade não é
possível sem a liberdade de fantasiar sexualmente. Montesquieu,
Locke e Rousseau não existem
sem Sade. Cultuamos a liberdade
política e prezamos a autonomia
também porque nossa fantasia
erótica se arrisca a enlouquecer,
imaginando e desejando coisas
impossíveis ou proibidas. É com a
liberdade de fantasiar que nasce
a culpa moderna: paramos de ser
culpados por não respeitar proibições e normas e passamos a sentir
culpa sobretudo por deixar de
perseguir o que desejamos.
Outro exemplo, mais próximo
de Miss Mundo. A sedução é a
modalidade geral de se afirmar e
de se relacionar em nossa cultura.
Mas dificilmente reconhecemos
nela um traço decisivo de nossa
subjetividade. Querer seduzir não
é o triunfo das aparências e da futilidade? Por que defender concursos que parecem premiar a sedução?
Ora, a sedução generalizada,
que nos envergonha um pouco, é
o corolário da revolução que aboliu os privilégios do berço. Se cada
um deve valer por si só (não pelo
lugar ou pelos pais de quem nasceu), então, nosso valor é decidido
pelo olhar dos outros, ou seja, por
nossa capacidade de seduzi-los.
Resumo: se nos orgulhamos da
liberdade de expressão, devemos
defender também os cinemas do
centro. Se nos orgulhamos do fim
dos privilégios na organização social, devemos defender a sedução
que organiza nossas relações sociais.
Em suma, podemos não gostar,
mas não podemos renunciar aos
"sex shops" e aos clubes de swing.
Como não podemos renunciar ao
desfile de Carnaval, ao concurso
de Miss Mundo ou à semana da
moda de São Paulo. Pois os cantos escuros do sexo e as passarelas
da sedução não são as escórias,
mas os caminhos de nossa liberdade.
ccalligari@uol.com.br
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