São Paulo, quinta-feira, 05 de dezembro de 2002

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CONTARDO CALLIGARIS

Na passarela de Miss Mundo, lá vamos nós

A Nigéria é um país dividido entre cristãos modernizadores e muçulmanos que têm pouca simpatia pelos charmes da modernidade ocidental. Os dois grupos se odeiam.
Em 2001, a nigeriana Agbani Darego, estudante de computação, foi eleita Miss Mundo, graças à elegância de seu porte e às suas qualidades intelectuais. Com isso, a Nigéria ganhou o direito de hospedar o concurso. O governo nigeriano (o atual presidente é cristão) decidiu promover o evento de 2002 para mostrar ao mundo que a Nigéria se moderniza. A comunidade muçulmana não gostou. Primeiro, várias candidatas protestaram contra a aplicação da lei islâmica na Nigéria e pediram que fosse abolida a pena de apedrejamento para mulheres acusadas de adultério. Também a data escolhida (7 de dezembro, no começo do Ramadã, mês sagrado dos muçulmanos) pareceu uma provocação. Enfim, como aceitar uma competição baseada em qualidades que o Islã mais conservador não preza nas mulheres, como a sedução, a independência e a formação intelectual e profissional?
Gota que fez transbordar o vaso, uma jovem jornalista nigeriana (de novo, uma mulher, mas onde já se viu?), ao comentar a chegada das moças, na semana retrasada, perguntou: "O que o profeta Muhammad pensaria do concurso?", e brincou: "Quem sabe ele escolhesse uma mulher entre as jovens pretendentes".
Blasfêmia! As autoridades religiosas do Estado de Zamfara decretaram uma "fatwa" contra a jovem, que já está em fuga pelo mundo, alvo designado de assassinato por qualquer fiel muçulmano que goste da idéia. E a rua pegou fogo. Balanço: mais de 215 mortos, 1.100 feridos, 22 igrejas e oito mesquitas destruídas.
O páreo mudou-se para a Inglaterra. Aqui, surpresa, as concorrentes foram acolhidas por outros protestos. Germaine Greer, feminista veterana, fez eco às autoridades islâmicas de Zamfara, declarando que era horrível que o concurso ocorresse em Londres.
Mesmo sem aventurar-se em críticas ideológicas, é fácil zombar de Miss Mundo: os concursos de beleza parecem puras futilidades. Os organizadores deveriam ter desistido na hora do primeiro bofetão na rua, não é?
O problema é que, pensando bem, não estou tão certo da futilidade do concurso de Miss Mundo. Há traços e manifestações de nossa cultura que podem nos incutir uma espécie de vergonha. Com isso, não reconhecemos que são parte integrante e necessária de nossa maneira de ser.
Um exemplo. A liberdade de expressão é crucial na nossa cultura: acreditamos no indivíduo como valor, portanto defendemos a liberdade de cada um se expressar livremente.
Essa atitude é fácil quando se trata de proteger uma revista militante ou mesmo (espero) o colunista de um diário. Mas hesitamos quando se trata de defender palavras e imagens que não têm, aparentemente, funções nobres ou superiores. Pelo jornal da CUT desceremos nas ruas e enfrentaremos polícia a cavalo e bombas de gás lacrimogêneo. Será que faríamos o mesmo pelos anúncios eróticos da "Private" ou pelos cinemas pornográficos do centro? Na hora de proteger a expressão das fantasias eróticas, achamos que essa é nossa parte acessória, envergonhada. No melhor dos casos, nós a defendemos só para evitar que a repressão estabeleça um precedente do tipo: amanhã será a vez da Folha. Dificilmente reconhecemos que a liberdade das fantasias eróticas é um traço irrenunciável de nosso jeito de ser.
Ora, nossa subjetividade não é possível sem a liberdade de fantasiar sexualmente. Montesquieu, Locke e Rousseau não existem sem Sade. Cultuamos a liberdade política e prezamos a autonomia também porque nossa fantasia erótica se arrisca a enlouquecer, imaginando e desejando coisas impossíveis ou proibidas. É com a liberdade de fantasiar que nasce a culpa moderna: paramos de ser culpados por não respeitar proibições e normas e passamos a sentir culpa sobretudo por deixar de perseguir o que desejamos.
Outro exemplo, mais próximo de Miss Mundo. A sedução é a modalidade geral de se afirmar e de se relacionar em nossa cultura. Mas dificilmente reconhecemos nela um traço decisivo de nossa subjetividade. Querer seduzir não é o triunfo das aparências e da futilidade? Por que defender concursos que parecem premiar a sedução?
Ora, a sedução generalizada, que nos envergonha um pouco, é o corolário da revolução que aboliu os privilégios do berço. Se cada um deve valer por si só (não pelo lugar ou pelos pais de quem nasceu), então, nosso valor é decidido pelo olhar dos outros, ou seja, por nossa capacidade de seduzi-los.
Resumo: se nos orgulhamos da liberdade de expressão, devemos defender também os cinemas do centro. Se nos orgulhamos do fim dos privilégios na organização social, devemos defender a sedução que organiza nossas relações sociais.
Em suma, podemos não gostar, mas não podemos renunciar aos "sex shops" e aos clubes de swing. Como não podemos renunciar ao desfile de Carnaval, ao concurso de Miss Mundo ou à semana da moda de São Paulo. Pois os cantos escuros do sexo e as passarelas da sedução não são as escórias, mas os caminhos de nossa liberdade.

ccalligari@uol.com.br


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