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CRÍTICA
Melodrama barato é indigno do passado do diretor
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
O ponto forte de "Coisas Belas e Sujas" é sua idéia central, a de que a imigração ilegal
tem a função, antes de mais nada,
de criar um ambiente de pessoas
temerosas, dispostas a tudo para
não ser apanhadas pelas autoridades de imigração.
Graças a essas pessoas, uma série de atividades ilegais podem ser
acobertadas, de tal modo que os
verdadeiros criminosos fazem o
papel bonito, ou quase isso.
Os ilegais, no caso, são o médico
nigeriano Okwe e a jovem turca
Senay. O refugiado Okwe ganha a
vida como chofer de táxi e porteiro de hotel. Nas horas que descansa, o faz no quarto de Senay -faxineira no hotel.
Estamos no início, e também na
melhor parte do filme, em que
Stephen Frears dedica-se a mostrar um determinado meio londrino. Estamos no direito de esperar por um novo "Minha Adorável Lavanderia", por exemplo.
Por que as coisas desandam a
horas tantas? Pode ser pela intriga
rocambolesca, na qual o gerente
do hotel usa os quartos para retirar rins de imigrantes ilegais em
troca de passaportes falsos. Pode
ser porque Senay passa a ser perseguida pela imigração e, como
decorrência, vitimada por chantagistas, que a forçam a praticar
atos degradantes em troca de seu
silêncio. Pode ser ainda porque
Okwe é uma alma boa, impecável,
boa demais para este mundo.
Se todos esses aspectos tendem
a introduzir um transbordamento romanesco certamente excessivo, o problema central do filme
-que engendra os demais- é de
outra ordem. Observamos o filme: as agruras dos imigrantes, dificuldades, humilhações etc. Mas
de onde fala Stephen Frears? O
que nos permitiria acreditar que
essa é a verdade? Que os imigrantes ilegais são seres angelicais como os descritos? Que os imigrantes legais tendem à canalhice?
Nada, exceto a crença de Frears
de que as coisas se passam assim.
Aceitemos essa crença. Mas vamos convir que, num mundo tomado por imagens, e quase sempre falsas, a crença não basta para
que acreditemos no que vemos.
A verdade da imagem é, hoje,
cada vez mais rara. Produzi-la
não é idêntico a imitar algo que
parece verdadeiro. Para ficar com
um exemplo recente, em "A Inglesa e o Duque", Eric Rohmer
chegou a resultados notáveis na
representação da época da Revolução Francesa ao reconstituí-la
através de quadros. Pode parecer
estranho a quem não viu, mas,
passados alguns minutos de estranhamento, o espectador já não
consegue conceber outra Paris revolucionária que não aquela, e a
desprezar as reconstituições que
imitam Paris no fim do século 18.
Com a dramaturgia algo semelhante acontece. À força de faltar
essa verdade que não vem da imitação, mas da produção de realidade, "Coisas Belas e Sujas", a cada rolo que passa, parece mais um
melodrama barato, indigno de
Frears, ou de seu passado. Essa é a
penosa impressão que fica.
Coisas Belas e Sujas
Produção: Inglaterra/Somália, 2002
Direção: Stephen Frears
Com: Chiwetel Ejiofor, Audrey Tautou
Quando: a partir de hoje no Espaço
Unibanco
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