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CARLOS HEITOR CONY
A mágica do cinema é sempre mágica
Uma revista inglesa, a "Empire", publicou, nesta semana, a sua lista dos momentos mágicos do cinema, de todos os tempos, dando o primeiro lugar
àquela cena de "E.T. - O Extraterrestre": a bicicletinha com dois
personagens voando e cortando a
enorme lua de estúdio, de um céu
também de estúdio.
Antes de mais nada, a revista
cometeu um pleonasmo, pois todos os momentos do cinema são
mágicos, mesmo os realistas mais
crus e nus. Não foi por acaso que o
primeiro nome do cinema foi
"lanterna mágica". O trem chegando de Vincennes, iluminando
uma parede do bulevar dos Capuchinhos, em Paris, no final do século passado, foi a primeira imagem produzida pelos irmãos Lumière e não deixou de ser uma
grande, uma inovadora mágica.
Além disso, há filmes que buscam exatamente a fantasia em si,
o faz-de-conta que pode ou não se
expressar maravilhosamente, no
território iluminado da telinha
prateada. "O Mágico de Oz" seria
o exemplo mais representativo, e,
em linhas gerais, toda a ficção
científica, um dos gêneros mais
constantes do cinema. "King
Kong", "2001 - Uma Odisséia no
Espaço", "A Mosca", "O Gabinete
do Dr. Caligari", são milhares os
casos em que o momento mágico,
de êxtase ou terror, integra a morfologia e a sintaxe da chamada
sétima arte.
Acontece que a relação dos filmes citados pela "Empire" quis
na realidade destacar as melhores
cenas do cinema como um todo,
dando de lambujem que tudo é
mágica numa arte que se baseia
na ilusão óptica, produzida exatamente para obter um efeito mágico, bom ou mau, não importa. E
se a intenção da lista foi consagrar os "melhores momentos",
evidente que a escolha do filme de
Spielberg foi, além de um erro,
uma tolice.
Que a cena é bonita, é, sem dúvida alguma. Acontece que ela foi
chupada de um filme de Vittorio
de Sicca, "Milagre em Milão",
não apenas no sentido plástico,
mas na intenção daquilo que poderíamos chamar de "conteúdo".
Não se tratava de nenhum extraterrestre, nem mesmo de crianças,
que disputam com os cães a "pole
position" de produzir lágrimas fáceis na platéia.
No filme da dupla De Sicca-Zavatini, são os favelados da periferia de Milão, dilacerados pelo
pós-guerra, que voam pelo céu da
capital lombarda, passam por cima do imponente Duomo, pilotando vassouras. Talvez não seja
uma cena bonitinha e arrumadinha, como a do filme de Spielberg,
mas tem um sentido análogo,
mais próximo da realidade do sonho a que os humanos nunca renunciam.
Periodicamente, são feitas as
listas dos dez ou dos cem mais do
cinema, não apenas dos filmes em
si, mas dos momentos que se incorporaram no imaginário de todos nós. Fred Astaire dançando
com um cabide, Delphine Seyrig
abrindo os braços numa cena de
"O Ano Passado em Marienbad",
Gene Kelly dançando na chuva,
Anita Ekberg tomando banho na
Fontana de Trevi (talvez o melhor logotipo dos anos 60), aquele
corte genial de Glauber Rocha em
"O Dragão da Maldade contra o
Santo Guerreiro", em que congela
a imagem de são Jorge que conhecemos das igrejas e terreiros populares, a pupila anavalhada de
Buñuel, feita em parceria com
Salvador Dalí -paro por aqui
para não me fatigar nem fatigar o
possível leitor.
Mas em termos de cena mais
bonita, mágica, se quiserem, e
real apesar de tudo, o prêmio pertence mesmo a Chaplin, final de
"Tempos Modernos". São numerosas as listas em que a dupla
Carlitos-Paulette Goddard, caminhando na estrada deserta, a linha de montanhas ao fundo e a
música que o próprio Chaplin
compôs para tema do filme, constroem a melhor cena do cinema
de todos os tempos, como efeito
plástico, como fim-começo de toda a aventura humana.
O próprio Chaplin produziu diversos momentos melhores -e
mágicos- em sua obra, mas
sempre apelando para um sentimentalismo muitas vezes suspeito, como no final de "Luzes da Cidade" ou a assombrosa mudez
dos olhares de um homem e de
um menino, naquela cena de "O
Garoto" que virou pôster.
Em "Tempos Modernos" não
há nenhum sentimentalismo, nenhum apelo baixo, simplesmente
o fim de uma caminhada de insucessos dos personagens -um homem e uma mulher- que se recusam a ficar chorando no meio-fio das ruas, à margem dos caminhos deste mundo. O vagabundo
pede que a moça não chore, que
sorria -e a sua canção chama-se
"Smile".
É um final clássico na obra de
Chaplin. Ele some sempre numa
estrada que Carlos Drummond
de Andrade notou, num poema
famoso, que era coberta de pó e
esperança. Some para reaparecer
na aventura seguinte, à qual chega sem se anunciar, sem ser esperado, sem nada a fazer a não ser
caminhar.
Em "Tempos Modernos", ele
não está sozinho. Silhuetados pela câmara de Rollie Totheroh, a
orquestra de Alfred Newman repetindo a canção-tema, eles parecem dois noivos em frangalhos
buscando um altar imaginário,
feito de montanhas ao fundo; um
altar que nunca atingirão, uma
caminhada que nunca chegará a
lugar nenhum. Mas continuam a
travessia, com passo inicialmente
incerto e breve, aos poucos se diluindo num horizonte inatingido
e mágico.
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