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São Paulo, sexta-feira, 05 de dezembro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

A mágica do cinema é sempre mágica

Uma revista inglesa, a "Empire", publicou, nesta semana, a sua lista dos momentos mágicos do cinema, de todos os tempos, dando o primeiro lugar àquela cena de "E.T. - O Extraterrestre": a bicicletinha com dois personagens voando e cortando a enorme lua de estúdio, de um céu também de estúdio.
Antes de mais nada, a revista cometeu um pleonasmo, pois todos os momentos do cinema são mágicos, mesmo os realistas mais crus e nus. Não foi por acaso que o primeiro nome do cinema foi "lanterna mágica". O trem chegando de Vincennes, iluminando uma parede do bulevar dos Capuchinhos, em Paris, no final do século passado, foi a primeira imagem produzida pelos irmãos Lumière e não deixou de ser uma grande, uma inovadora mágica.
Além disso, há filmes que buscam exatamente a fantasia em si, o faz-de-conta que pode ou não se expressar maravilhosamente, no território iluminado da telinha prateada. "O Mágico de Oz" seria o exemplo mais representativo, e, em linhas gerais, toda a ficção científica, um dos gêneros mais constantes do cinema. "King Kong", "2001 - Uma Odisséia no Espaço", "A Mosca", "O Gabinete do Dr. Caligari", são milhares os casos em que o momento mágico, de êxtase ou terror, integra a morfologia e a sintaxe da chamada sétima arte.
Acontece que a relação dos filmes citados pela "Empire" quis na realidade destacar as melhores cenas do cinema como um todo, dando de lambujem que tudo é mágica numa arte que se baseia na ilusão óptica, produzida exatamente para obter um efeito mágico, bom ou mau, não importa. E se a intenção da lista foi consagrar os "melhores momentos", evidente que a escolha do filme de Spielberg foi, além de um erro, uma tolice.
Que a cena é bonita, é, sem dúvida alguma. Acontece que ela foi chupada de um filme de Vittorio de Sicca, "Milagre em Milão", não apenas no sentido plástico, mas na intenção daquilo que poderíamos chamar de "conteúdo". Não se tratava de nenhum extraterrestre, nem mesmo de crianças, que disputam com os cães a "pole position" de produzir lágrimas fáceis na platéia.
No filme da dupla De Sicca-Zavatini, são os favelados da periferia de Milão, dilacerados pelo pós-guerra, que voam pelo céu da capital lombarda, passam por cima do imponente Duomo, pilotando vassouras. Talvez não seja uma cena bonitinha e arrumadinha, como a do filme de Spielberg, mas tem um sentido análogo, mais próximo da realidade do sonho a que os humanos nunca renunciam.
Periodicamente, são feitas as listas dos dez ou dos cem mais do cinema, não apenas dos filmes em si, mas dos momentos que se incorporaram no imaginário de todos nós. Fred Astaire dançando com um cabide, Delphine Seyrig abrindo os braços numa cena de "O Ano Passado em Marienbad", Gene Kelly dançando na chuva, Anita Ekberg tomando banho na Fontana de Trevi (talvez o melhor logotipo dos anos 60), aquele corte genial de Glauber Rocha em "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro", em que congela a imagem de são Jorge que conhecemos das igrejas e terreiros populares, a pupila anavalhada de Buñuel, feita em parceria com Salvador Dalí -paro por aqui para não me fatigar nem fatigar o possível leitor.
Mas em termos de cena mais bonita, mágica, se quiserem, e real apesar de tudo, o prêmio pertence mesmo a Chaplin, final de "Tempos Modernos". São numerosas as listas em que a dupla Carlitos-Paulette Goddard, caminhando na estrada deserta, a linha de montanhas ao fundo e a música que o próprio Chaplin compôs para tema do filme, constroem a melhor cena do cinema de todos os tempos, como efeito plástico, como fim-começo de toda a aventura humana.
O próprio Chaplin produziu diversos momentos melhores -e mágicos- em sua obra, mas sempre apelando para um sentimentalismo muitas vezes suspeito, como no final de "Luzes da Cidade" ou a assombrosa mudez dos olhares de um homem e de um menino, naquela cena de "O Garoto" que virou pôster.
Em "Tempos Modernos" não há nenhum sentimentalismo, nenhum apelo baixo, simplesmente o fim de uma caminhada de insucessos dos personagens -um homem e uma mulher- que se recusam a ficar chorando no meio-fio das ruas, à margem dos caminhos deste mundo. O vagabundo pede que a moça não chore, que sorria -e a sua canção chama-se "Smile".
É um final clássico na obra de Chaplin. Ele some sempre numa estrada que Carlos Drummond de Andrade notou, num poema famoso, que era coberta de pó e esperança. Some para reaparecer na aventura seguinte, à qual chega sem se anunciar, sem ser esperado, sem nada a fazer a não ser caminhar.
Em "Tempos Modernos", ele não está sozinho. Silhuetados pela câmara de Rollie Totheroh, a orquestra de Alfred Newman repetindo a canção-tema, eles parecem dois noivos em frangalhos buscando um altar imaginário, feito de montanhas ao fundo; um altar que nunca atingirão, uma caminhada que nunca chegará a lugar nenhum. Mas continuam a travessia, com passo inicialmente incerto e breve, aos poucos se diluindo num horizonte inatingido e mágico.


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