São Paulo, domingo, 05 de dezembro de 2004

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CRÍTICA

Série desvela o avesso do sonho americano

BIA ABRAMO COLUNISTA DA FOLHA

O subúrbio norte-americano é um daqueles lugares do imaginário coletivo pleno de significados, mesmo fora dos EUA. É ali que se realizam as fantasias mais ambiciosas sobre o poder do dinheiro, a supremacia do estilo de vida, a superioridade inconteste da ideologia branca, protestante e anglo-saxã etc. E, claro, é ali que a literatura, o cinema e a cultura pop vão procurar as fissuras e as contradições de tudo isso.
Pelo direito ou pelo avesso, a vida do subúrbio -ou da pequena cidade, o que no fundo vai dar mais ou menos na mesma- é dos cenários mais profícuos do universo dos seriados, especialmente do dramas. Enquanto as metrópoles se tornaram os lugares do crime ou da tragédia -não à toa, as séries policiais tomaram fôlego nos últimos dois anos-, no subúrbio ou na pequena cidade ainda há tempo para o drama humano, a experimentação adolescente, a observação das relações. Ou, se olhado com ironia, sintomas de decadência e de hipocrisia.
"Desperate Housewives", seriado da nova temporada do Sony, explora o lado escuro do subúrbio a partir da esterilidade da vida das mulheres adultas. Como em "Sex and the City", gira em torno da relação de quatro amigas perto dos 40 anos que moram em Wisteria Lane -o trocadilho é evidentemente proposital. Em vez de mulheres solteiras e glamourosas que enfrentam o mercado sexual de NY, em "Desperate" temos mulheres casadas ou divorciadas enterradas no marasmo e na falta de perspectivas da vida doméstica.
O tom é de humor negro, a começar pela narradora -Mary-Alice, que se suicida com um tiro na cabeça e, depois de morta, passa a ter o privilégio de ultrapassar as fronteiras da privacidade das amigas. Claro, as amigas, como em "Sex and the City", representam tipos -há a descasada ávida por um novo caso; a dona-de-casa impecável em crise com a família; a que suporta o casamento porque trai o marido e a ex-executiva que abandonou a carreira para cuidar dos filhos.
O cenário hiper-realista de Wisteria Lane -as casas confortáveis sem muros, os jardins bem cuidados, a quietude privilegiada das ruas- é claramente inspirado por "Edward Mãos-de-Tesoura", de Tim Burton, e, mais recentemente, por "Beleza Americana", de Sam Mendes. Aliás, embora o roteiro seja bastante calcado em "Sex and the City", há tempos que não se via uma série com tantas referências cinematográficas, sobretudo no caprichadíssimo primeiro episódio.
Claro que os personagens são um tanto caricatos, mas é também por isso que funciona tão bem a operação de desvelamento desse mundo que se acredita perfeito. Não dá para prever se a caricatura mantém sua graça por mais de 20 episódios e quais serão os desdobramentos do suspense em torno do suicídio de Mary Alice, mas, por enquanto, é a novidade mais interessante dos seriados novos da temporada 2004/2005.



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