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CRÍTICA
Série desvela o avesso do sonho americano
BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA
O subúrbio norte-americano é um daqueles lugares
do imaginário coletivo pleno de
significados, mesmo fora dos
EUA. É ali que se realizam as fantasias mais ambiciosas sobre o
poder do dinheiro, a supremacia
do estilo de vida, a superioridade
inconteste da ideologia branca,
protestante e anglo-saxã etc. E,
claro, é ali que a literatura, o cinema e a cultura pop vão procurar
as fissuras e as contradições de
tudo isso.
Pelo direito ou pelo avesso, a
vida do subúrbio -ou da pequena cidade, o que no fundo vai dar
mais ou menos na mesma- é
dos cenários mais profícuos do
universo dos seriados, especialmente do dramas. Enquanto as
metrópoles se tornaram os lugares do crime ou da tragédia
-não à toa, as séries policiais tomaram fôlego nos últimos dois
anos-, no subúrbio ou na pequena cidade ainda há tempo para o drama humano, a experimentação adolescente, a observação das relações. Ou, se olhado
com ironia, sintomas de decadência e de hipocrisia.
"Desperate Housewives", seriado da nova temporada do
Sony, explora o lado escuro do
subúrbio a partir da esterilidade
da vida das mulheres adultas.
Como em "Sex and the City", gira em torno da relação de quatro
amigas perto dos 40 anos que
moram em Wisteria Lane -o
trocadilho é evidentemente proposital. Em vez de mulheres solteiras e glamourosas que enfrentam o mercado sexual de NY, em
"Desperate" temos mulheres casadas ou divorciadas enterradas
no marasmo e na falta de perspectivas da vida doméstica.
O tom é de humor negro, a começar pela narradora -Mary-Alice, que se suicida com um tiro
na cabeça e, depois de morta,
passa a ter o privilégio de ultrapassar as fronteiras da privacidade das amigas. Claro, as amigas,
como em "Sex and the City", representam tipos -há a descasada ávida por um novo caso; a dona-de-casa impecável em crise
com a família; a que suporta o casamento porque trai o marido e a
ex-executiva que abandonou a
carreira para cuidar dos filhos.
O cenário hiper-realista de
Wisteria Lane -as casas confortáveis sem muros, os jardins bem
cuidados, a quietude privilegiada
das ruas- é claramente inspirado por "Edward Mãos-de-Tesoura", de Tim Burton, e, mais
recentemente, por "Beleza Americana", de Sam Mendes. Aliás,
embora o roteiro seja bastante
calcado em "Sex and the City", há
tempos que não se via uma série
com tantas referências cinematográficas, sobretudo no caprichadíssimo primeiro episódio.
Claro que os personagens são
um tanto caricatos, mas é também por isso que funciona tão
bem a operação de desvelamento
desse mundo que se acredita perfeito. Não dá para prever se a caricatura mantém sua graça por
mais de 20 episódios e quais serão os desdobramentos do suspense em torno do suicídio de
Mary Alice, mas, por enquanto, é
a novidade mais interessante dos
seriados novos da temporada
2004/2005.
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