São Paulo, terça-feira, 05 de dezembro de 2006

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BERNARDO CARVALHO

A banalidade do mal


Em "As Benevolentes", o narrador não vê o mal como exceção nem o restringe a grupos

O ROMANCE "Les Bienveillantes" ("As Benevolentes", ed. Gallimard), escrito em francês pelo americano Jonathan Littell, 39, recebeu no mês passado o mais prestigioso prêmio literário da França, o Goncourt, depois de vender mais de 200 mil exemplares.
Também deixou um rastro de polêmica numa temporada (a volta das férias de verão) em geral morna a despeito dos esforços da mídia e dos editores, e do número avassalador de lançamentos, que neste ano ultrapassou os 600.
O livro foi alvo de ataques do respeitado documentarista Claude Lanzmann, diretor do monumental "Shoah", de 1985 -o documentário de nove horas sobre o Holocausto teria sido uma das inspirações do romance, segundo o próprio Littell. Lanzmann, entretanto, manifestou sua revolta com o fato de a memória do Holocausto ter sido reservada pelo autor estreante a um oficial da SS (esquadrão de elite nazista), protagonista e narrador do romance.
Littell nasceu em Nova York, numa família judia, e foi educado na França. É filho do jornalista e escritor de thrillers Robert Littell. Traduziu Sade e Jean Genet para o inglês. Estudou em Yale e trabalhou para a organização humanitária Ação contra a Fome (ACF) em missões na Bósnia, na Chechênia, no Congo e no Afeganistão. Em 2001, passou a se dedicar exclusivamente à pesquisa de seu romance, que narra as memórias de um oficial da SS, reconstituindo os fatos históricos e as atrocidades da guerra com riqueza (e às vezes excesso) de detalhes.
Maximilien Aue, o narrador, é um homem letrado, filho de mãe francesa e pai alemão, que aprende desde pequeno a mascarar os desejos, acuado entre a homossexualidade, o sadomasoquismo e a relação incestuosa e obsessiva com a irmã, até se alistar na SS e terminar como inspetor dos campos de extermínio, especialista na "questão judaica" e na "solução final".
O título do romance (cujos direitos no Brasil foram comprados pela Objetiva) é um eufemismo para designar as Eumênides, ou Fúrias, divindades da mitologia grega encarregadas de atormentar os criminosos. Na célebre trilogia de Ésquilo, elas perseguem Orestes, que matou a mãe para vingar o pai. O romance de Littell começa com o ex-oficial da SS, velho fabricante de rendas no norte da França, protegido por um nome falso, narrando suas memórias e termina cerca de 900 páginas depois, em tom de farsa, durante a tomada de Berlim pelos russos, em 1945, com o jovem oficial perseguido por dois policiais a acusá-lo de ter matado a própria mãe e o padrasto com requintes de violência.
O maior incômodo para uma perspectiva humanista talvez seja a lógica implacável do narrador, que não vê o mal como exceção nem o restringe a grupos específicos de raça, cor, crença, nacionalidade ou extração social - sem que isso o isente da culpa. É a sua reinterpretação da "banalidade do mal" a que se referiu Hannah Arendt a propósito de Eichmann. "Está aí certamente a imensa vantagem sobre os fracos daqueles que chamamos fortes: uns como os outros estão minados pela angústia, pelo medo, pela dúvida, mas aqueles sabem disso e padecem, enquanto estes nada vêem e, para melhor escorar o muro que os protege desse vazio sem fundo, voltam-se contra os primeiros, cuja fragilidade demasiado visível ameaça a sua débil segurança", diz o protagonista.
Seu niilismo só lhe permite ver o homem como impossibilidade: um ser condenado a perpetuar o mal que só reconhece nos outros. Assim, toda forma de organização para o bem comum não passaria de uma tática para administrar o que já está perdido a priori, um paliativo insuficiente para conter o mal: "Muito se falou, depois da guerra, para tentar explicar o que havia acontecido, o inumano. Mas o inumano, me desculpem, não existe. Só existe o humano e sempre o humano".
Toda promessa de bem comum não passaria, portanto, de hipocrisia, pois a consciência da impossibilidade, uma vez manifesta e promulgada, tornaria impraticável todo contrato social ou civilizatório. Essa seria a nossa dimensão trágica: a consciência insuportável do que somos e que precisamos sublimar para sobreviver em sociedade.
Uma visão recente e radicalmente oposta a esse niilismo fantasmagórico pode ser detectada no humanismo dos filmes de Almodóvar, segundo o qual tudo o que é humano, com todas as suas fraquezas, vícios e defeitos, acaba redimido pela graça e pelo humor. Não é por acaso que a última frase que se ouve em "Volver" seja justamente: "Os fantasmas não choram". E que todo mundo chore em "Volver".


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