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BERNARDO CARVALHO
A banalidade do mal
Em "As Benevolentes", o narrador não vê o mal como exceção nem o restringe a grupos
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O ROMANCE "Les Bienveillantes" ("As Benevolentes", ed.
Gallimard), escrito em francês pelo americano Jonathan Littell,
39, recebeu no mês passado o mais
prestigioso prêmio literário da
França, o Goncourt, depois de vender mais de 200 mil exemplares.
Também deixou um rastro de polêmica numa temporada (a volta das
férias de verão) em geral morna a
despeito dos esforços da mídia e dos
editores, e do número avassalador
de lançamentos, que neste ano ultrapassou os 600.
O livro foi alvo de ataques do respeitado documentarista Claude
Lanzmann, diretor do monumental
"Shoah", de 1985 -o documentário
de nove horas sobre o Holocausto
teria sido uma das inspirações do romance, segundo o próprio Littell.
Lanzmann, entretanto, manifestou
sua revolta com o fato de a memória
do Holocausto ter sido reservada pelo autor estreante a um oficial da SS
(esquadrão de elite nazista), protagonista e narrador do romance.
Littell nasceu em Nova York, numa família judia, e foi educado na
França. É filho do jornalista e escritor de thrillers Robert Littell. Traduziu Sade e Jean Genet para o inglês. Estudou em Yale e trabalhou
para a organização humanitária
Ação contra a Fome (ACF) em missões na Bósnia, na Chechênia, no
Congo e no Afeganistão. Em 2001,
passou a se dedicar exclusivamente
à pesquisa de seu romance, que narra as memórias de um oficial da SS,
reconstituindo os fatos históricos e
as atrocidades da guerra com riqueza (e às vezes excesso) de detalhes.
Maximilien Aue, o narrador, é um
homem letrado, filho de mãe francesa e pai alemão, que aprende desde
pequeno a mascarar os desejos,
acuado entre a homossexualidade, o
sadomasoquismo e a relação incestuosa e obsessiva com a irmã, até se
alistar na SS e terminar como inspetor dos campos de extermínio, especialista na "questão judaica" e na
"solução final".
O título do romance (cujos direitos no Brasil foram comprados pela
Objetiva) é um eufemismo para designar as Eumênides, ou Fúrias, divindades da mitologia grega encarregadas de atormentar os criminosos. Na célebre trilogia de Ésquilo,
elas perseguem Orestes, que matou
a mãe para vingar o pai. O romance
de Littell começa com o ex-oficial da
SS, velho fabricante de rendas no
norte da França, protegido por um
nome falso, narrando suas memórias e termina cerca de 900 páginas
depois, em tom de farsa, durante a
tomada de Berlim pelos russos, em
1945, com o jovem oficial perseguido por dois policiais a acusá-lo de ter
matado a própria mãe e o padrasto
com requintes de violência.
O maior incômodo para uma perspectiva humanista talvez seja a lógica implacável do narrador, que não
vê o mal como exceção nem o restringe a grupos específicos de raça,
cor, crença, nacionalidade ou extração social - sem que isso o isente da
culpa. É a sua reinterpretação da
"banalidade do mal" a que se referiu
Hannah Arendt a propósito de Eichmann. "Está aí certamente a imensa
vantagem sobre os fracos daqueles
que chamamos fortes: uns como os
outros estão minados pela angústia,
pelo medo, pela dúvida, mas aqueles
sabem disso e padecem, enquanto
estes nada vêem e, para melhor escorar o muro que os protege desse
vazio sem fundo, voltam-se contra
os primeiros, cuja fragilidade demasiado visível ameaça a sua débil segurança", diz o protagonista.
Seu niilismo só lhe permite ver o
homem como impossibilidade: um
ser condenado a perpetuar o mal
que só reconhece nos outros. Assim,
toda forma de organização para o
bem comum não passaria de uma tática para administrar o que já está
perdido a priori, um paliativo insuficiente para conter o mal: "Muito se
falou, depois da guerra, para tentar
explicar o que havia acontecido, o
inumano. Mas o inumano, me desculpem, não existe. Só existe o humano e sempre o humano".
Toda promessa de bem comum
não passaria, portanto, de hipocrisia, pois a consciência da impossibilidade, uma vez manifesta e promulgada, tornaria impraticável todo
contrato social ou civilizatório. Essa
seria a nossa dimensão trágica: a
consciência insuportável do que somos e que precisamos sublimar para
sobreviver em sociedade.
Uma visão recente e radicalmente
oposta a esse niilismo fantasmagórico pode ser detectada no humanismo dos filmes de Almodóvar, segundo o qual tudo o que é humano, com
todas as suas fraquezas, vícios e defeitos, acaba redimido pela graça e
pelo humor. Não é por acaso que a
última frase que se ouve em "Volver" seja justamente: "Os fantasmas
não choram". E que todo mundo
chore em "Volver".
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