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MARCELO COELHO
Ortodoxia
Gilbert Keith Chesterton não escreve para ateus ou religiosos, mas sim para pessoas felizes
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DEPOIS DE tantos livros recentes a favor do ateísmo, ler
uma defesa da religião católica pode ser desafio interessante -e
acaba de ser publicado no Brasil um
dos textos mais originais e vertiginosos que conheço sobre o assunto.
Trata-se de "Ortodoxia", e foi escrito por Gilbert Keith Chesterton
(1874-1936) em 1908. Um século depois de sua aparição, o livro mantém
todo o seu frescor e novidade.
Não digo "atualidade", pois os adversários visados por Chesterton
não são os mesmos que o catolicismo se empenha em atacar atualmente. Não há, em "Ortodoxia",
muita preocupação com a liberdade
sexual, e naturalmente condenar os
males da sociedade de consumo não
era uma prioridade em 1908.
Claro, Chesterton investe contra
as teorias de Darwin e as conseqüências que a crença no determinismo biológico pode trazer a nosso
julgamento moral. Mas não luta, como os fundamentalistas e criacionistas de hoje, em nome da autoridade intocável de um livro sagrado.
O que torna "Ortodoxia" fascinante é que seu autor não apela a nenhum dogmatismo para defender o
dogma. Chesterton invoca apenas a
sua intuição pessoal, o seu bom senso, a sua experiência da realidade...
E, como sua intuição, seu bom
senso e sua experiência da realidade
não são os de um homem comum,
mas sim os de um poeta e ficcionista,
Chesterton acaba produzindo uma
obra espantosa, tão cheia de paradoxos, encantamentos e implausibilidades quanto um romance de ficção
científica ou um conto de literatura
fantástica.
Para defender a crença em Jesus e
nos milagres, Chesterton resolve tomar o partido mais arriscado, mais
delirante: afirma que também devemos acreditar em fadas e fantasmas.
Cito um trecho característico.
"Quando nos perguntamos por
que os ovos se transformam em pássaros ou por que as frutas caem no
outono, devemos responder exatamente como a fada madrinha responderia se Cinderela lhe perguntasse por que os ratos se transformaram em cavalos ou por que as roupas
dela desapareceram depois da meia-noite. Devemos responder que é
MÁGICA. Não é uma "lei", pois não
entendemos sua fórmula geral. Não
é uma necessidade, pois, embora
contemos com esse tipo de conhecimento na prática, não temos o direito de dizer que ele sempre deve
acontecer."
Há aqui uma curiosa reviravolta
religiosa por cima do ceticismo e das
críticas dos filósofos ao princípio da
causalidade. Como não há necessidade absoluta na existência do Universo, tudo se torna encantado e
implausível...
Certamente, a razão pode pouco
se quiser combater esse tipo de argumentos; seria como escrever a
contestação científica de um poema
lírico. E, se Chesterton não convence seus leitores da sensatez da doutrina católica, é difícil ficar imune à expressão de seu imenso contentamento com o mundo.
É o contentamento de uma criança. Falando de Robinson Crusoé,
Chesterton descreve a felicidade do
náufrago em encontrar alguns objetos úteis entre os destroços do navio.
"É um bom exercício, em horas vazias e desagradáveis do dia, olhar para qualquer coisa, a caixa para carvão ou a estante de livros, e pensar
que alguém poderia sentir-se feliz
por ter tirado aquilo de um navio a
pique numa ilha solitária. Mas é um
exercício ainda melhor lembrar-se
como todas as coisas passaram por
esse salvamento por um triz: tudo
foi salvo de um naufrágio."
Naturalmente, esse tende a ser o
ponto de vista de quem não passa
frio por falta de carvão. Mas, por isso
mesmo, Chesterton não é daqueles
que negam a vida terrena, num sombrio apostolado da perfeição espiritual. Um dos seus principais argumentos a favor do catolicismo é que
as aparentes contradições da doutrina se adaptam às contradições reais
da experiência humana. Mas, acima
de tudo, a crença de Chesterton parece nascer de um sentimento de
gratidão.
Nesse sentido, Chesterton não
prega aos convertidos, como em geral se diz (erradamente, na minha
opinião) ser o caso de Richard Dawkins e outros ateus.
Não se dirige aos crentes e dificilmente persuadirá os descrentes. Ele
não escreve para ateus ou religiosos,
mas para outro tipo de pessoas: as
pessoas felizes. Gostar de seu livro
não depende, acredito, de adesão
intelectual.
Mas talvez "Ortodoxia" seja um
bom teste para cada um avaliar a sua
própria felicidade; e, de minha parte,
seria ingrato omitir que não saí frustrado desse confronto.
coelhofsp@uol.com.br
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