São Paulo, quarta-feira, 06 de fevereiro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARCELO COELHO

Ortodoxia


Gilbert Keith Chesterton não escreve para ateus ou religiosos, mas sim para pessoas felizes

DEPOIS DE tantos livros recentes a favor do ateísmo, ler uma defesa da religião católica pode ser desafio interessante -e acaba de ser publicado no Brasil um dos textos mais originais e vertiginosos que conheço sobre o assunto.
Trata-se de "Ortodoxia", e foi escrito por Gilbert Keith Chesterton (1874-1936) em 1908. Um século depois de sua aparição, o livro mantém todo o seu frescor e novidade.
Não digo "atualidade", pois os adversários visados por Chesterton não são os mesmos que o catolicismo se empenha em atacar atualmente. Não há, em "Ortodoxia", muita preocupação com a liberdade sexual, e naturalmente condenar os males da sociedade de consumo não era uma prioridade em 1908.
Claro, Chesterton investe contra as teorias de Darwin e as conseqüências que a crença no determinismo biológico pode trazer a nosso julgamento moral. Mas não luta, como os fundamentalistas e criacionistas de hoje, em nome da autoridade intocável de um livro sagrado.
O que torna "Ortodoxia" fascinante é que seu autor não apela a nenhum dogmatismo para defender o dogma. Chesterton invoca apenas a sua intuição pessoal, o seu bom senso, a sua experiência da realidade...
E, como sua intuição, seu bom senso e sua experiência da realidade não são os de um homem comum, mas sim os de um poeta e ficcionista, Chesterton acaba produzindo uma obra espantosa, tão cheia de paradoxos, encantamentos e implausibilidades quanto um romance de ficção científica ou um conto de literatura fantástica.
Para defender a crença em Jesus e nos milagres, Chesterton resolve tomar o partido mais arriscado, mais delirante: afirma que também devemos acreditar em fadas e fantasmas. Cito um trecho característico.
"Quando nos perguntamos por que os ovos se transformam em pássaros ou por que as frutas caem no outono, devemos responder exatamente como a fada madrinha responderia se Cinderela lhe perguntasse por que os ratos se transformaram em cavalos ou por que as roupas dela desapareceram depois da meia-noite. Devemos responder que é MÁGICA. Não é uma "lei", pois não entendemos sua fórmula geral. Não é uma necessidade, pois, embora contemos com esse tipo de conhecimento na prática, não temos o direito de dizer que ele sempre deve acontecer."
Há aqui uma curiosa reviravolta religiosa por cima do ceticismo e das críticas dos filósofos ao princípio da causalidade. Como não há necessidade absoluta na existência do Universo, tudo se torna encantado e implausível...
Certamente, a razão pode pouco se quiser combater esse tipo de argumentos; seria como escrever a contestação científica de um poema lírico. E, se Chesterton não convence seus leitores da sensatez da doutrina católica, é difícil ficar imune à expressão de seu imenso contentamento com o mundo.
É o contentamento de uma criança. Falando de Robinson Crusoé, Chesterton descreve a felicidade do náufrago em encontrar alguns objetos úteis entre os destroços do navio.
"É um bom exercício, em horas vazias e desagradáveis do dia, olhar para qualquer coisa, a caixa para carvão ou a estante de livros, e pensar que alguém poderia sentir-se feliz por ter tirado aquilo de um navio a pique numa ilha solitária. Mas é um exercício ainda melhor lembrar-se como todas as coisas passaram por esse salvamento por um triz: tudo foi salvo de um naufrágio."
Naturalmente, esse tende a ser o ponto de vista de quem não passa frio por falta de carvão. Mas, por isso mesmo, Chesterton não é daqueles que negam a vida terrena, num sombrio apostolado da perfeição espiritual. Um dos seus principais argumentos a favor do catolicismo é que as aparentes contradições da doutrina se adaptam às contradições reais da experiência humana. Mas, acima de tudo, a crença de Chesterton parece nascer de um sentimento de gratidão.
Nesse sentido, Chesterton não prega aos convertidos, como em geral se diz (erradamente, na minha opinião) ser o caso de Richard Dawkins e outros ateus. Não se dirige aos crentes e dificilmente persuadirá os descrentes. Ele não escreve para ateus ou religiosos, mas para outro tipo de pessoas: as pessoas felizes. Gostar de seu livro não depende, acredito, de adesão intelectual.
Mas talvez "Ortodoxia" seja um bom teste para cada um avaliar a sua própria felicidade; e, de minha parte, seria ingrato omitir que não saí frustrado desse confronto.

coelhofsp@uol.com.br


Texto Anterior: Crítica/artes plásticas: Mostra foge de olhar estereotipado do Brasil
Próximo Texto: Mostra põe sapatos de Westwood na vitrine
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.