São Paulo, sábado, 06 de fevereiro de 2010

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RODAPÉ LITERÁRIO


Idioma dos desusos Novo livro do escritor Marcelo Tápia traz poemas que associam reflexão crítica e metalinguagem


MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

NO POEMA "Agora", que abre "Valor de Uso", de Marcelo Tápia, lemos os seguintes versos: "o inútil/ tem uso// passado/ e futuro// agora é só// o hiato imediato/ do desuso// para um velho/ momento único".
Apresentado como "poema-epígrafe", ele define o livro desse escritor que, depois de publicar "O Bagatelista", "Rótulo" e "Pedra Volátil", nos anos 80 e 90, esteve atuante como coordenador da versão paulistana do Bloomsday (o evento mundial em homenagem ao irlandês James Joyce) e diretor da Casa Guilherme de Almeida.
Em sintonia com o título do livro (que explora a distinção marxista entre valor de uso e valor de troca das mercadorias como um dos motores da produção capitalista), o poema traz uma singular combinação de reflexão crítica e formalização poética.
O verso "agora é só", isolado entre quatro dísticos, é ele mesmo "o hiato imediato do desuso", a expressão pontual daquilo que não tem uso e, portanto, não pode se converter em mercadoria, mas que guarda um valor inalienável como fato de cultura e promessa de redenção do "momento único", daquele "aqui e agora" que escapa da reprodução.
Boa parte dos poemas prossegue nesse caminho que é metalinguístico sem sê-lo: quando, em "Urbe", Tápia fala da cidade "prensada pelotempo", ou faz versos irônicos sobre seu Lada (o automóvel russo que "esvaziou-se de sua carga/ de valor para ser nada/ além de um nome", mas que entra assim "numa nova/ escala de valores/ de uso, incluso aquele/ de seu valor nulo/ de troca"), está falando de coisas que resistem a ser coisas, mas também dapoesia como análogo dos "inutensílios" do mundo (para usar o neologismo de Paulo Leminski).
Mesmo na série "Algo para Nada", reunião de sete poemas que patenteiam sua empatia com a lírica grega, Tápia contrapõe a servidão da vida e da linguagem ordinárias ("Fui e sou servidor de muitos senhores") à servidão poética, que um dia perseguiu as musas e que hoje, quando "a regra é não haver", consiste em perseguir a negatividade: "não mais ser-/virei, a não ser/ ao não-ser que me inventou".
Nesse notável jogo de palavras, que finaliza a série, o ser que um dia serviu prefere não mais ser e não mais servir, senão a um "fim maior" (tal qual enunciado no primeiro poema de "Algo para Nada"), que entretanto é um "não-ser" de conotações teológicas e poéticas.
A seção final de "Valor de Uso" traz poemas belíssimos como "Crepúsculo" e "Aporismo", com menções ocultas e glosas de Bilac e Drummond, ou versos desentranhados da prosa de Kierkegaard e Alejo Carpentier mostrando como Tápia faz uso da tradição literária (incluindo haicai e poesia concreta) para encontrar um novo valor para esse idioma dos desusos.


VALOR DE USO
Autor: Marcelo Tápia
Editora: Annablume
Quanto: R$ 20 (90 págs.)
Avaliação: ótimo




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