São Paulo, Sábado, 06 de Fevereiro de 1999
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Speculum, espelho, especulação

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

O verbo é tudo. Ele é o princípio. Mas o verbo - a palavra- nem sempre vale a mesma coisa, termina em desencontros. Revolução, a palavra quente da Era dos Extremos, até meados do século 16 era totalmente inofensiva, utilizada pelos astrônomos para descrever o inexorável e lento movimento de rotação dos astros no espaço. Rebelião, sim, incendiava a imaginação. Implica na reativação da guerra (de re+bellum, guerra). Hoje, trocaram de lugar: rebelião é motim, e revolução, o sagrado movimento de abalar estruturas.
Especulação irrompeu no noticiário sob a forma explosiva de sempre. George Soros até o fim da semana passada era ouvido como guru por jornais e jornalistas, ninguém duvidou de suas receitas para o Brasil durante o convescote hibernal de Davos, Suíça. Soros produziu sucessivas manchetes, sempre bombásticas, sem que ninguém -no caso os jornalistas- investigassem se o maior proprietário imobiliário na Argentina, agora convertido em oráculo, porventura estava sendo movido por interesses pessoais.
A metamorfose kafkiana -algo como o homem que acorda barata- deu-se a partir da indicação de Armínio Fraga, diretor de um dos negócios de Soros, para o cargo de presidente do Banco Central. Da noite para o dia o respeitado
megainvestidor foi rebaixado para megaespeculador, e o seu ex-funcionário, por osmose, sumariamente condenado. O jornalismo errático, descontinuado e fragmentador, tão em voga hoje, tem dessas coisas. Não é por acaso que luminares da profissão (ou do negócio) confessam publicamente que jornal serve mesmo para embrulhar peixe.
Speculum, em latim, é espelho. Vem de spectare, olhar, contemplar, observar. Deu spectrum (visão, imaginação, simulacro), specularia (vidro, vidraças), spectacles (óculos, em inglês), também espetáculo, espectador. Gerou, sobretudo, especulação. Que entrou na linguagem moderna pela porta da filosofia: reflexão, contemplação, indagação, dúvida. Especulativo, segundo o nosso patrício Moraes (1ª ed., 1789, Lisboa) era sinônimo de teórico e oposto ao prático.
O espelho, ferramenta da vaidade e da circunstância, deu nome à manifestação máxima da condição humana -pensar, cogitar. Mas a especulação jamais é gratuita: a simples observação de um fenômeno implica numa intervenção. Daí as conotações adversas e perversas que a palavra progressivamente adotou. Nosso Padre Vieira, combinação superior de filólogo-estadista-sermonista-cruzado, ainda no século 17, usou "especulação sobre os portos" para significar vigilância aduaneira (
Cartas, t. 2, p. 255).
O liberalismo econômico que veio em seguida à Revolução Francesa, permitiu que da observação atenta dos negócios se auferissem ganhos espetaculares. Daí foi um passo para considerar o especulador dos mercados como figura abominável. Mas a economia de mercado, por meio do sistema bursátil, não é, em si, um processo organicamente especulativo? O que é o capitalismo, especulação filosófica?
O feirante que aumentou indevidamente o preço do tomate é, para todos os efeitos, um especulador. Mas não constitui prática especulativa o aumento do preço de jornais e revistas por conta de um papel que ainda não foi importado e só será impresso dentro de, no mínimo, três meses?
O jornalismo especulativo é legítimo? O "corredor polonês" e o linchamento midiático que assistimos a cada semana com novas vítimas sob o pretexto da "independência" são honestos e saudáveis?
Quando Gustavo Franco deixou o BC, há menos de um mês, jornais e revistas badalaram uma especulação: deixava a função porque o governo não atendera a uma solicitação da empresa da família da sua mulher. A informação não se confirmou, mas os especuladores não se retrataram.
Ouvi falar em George Soros, pela primeira vez, em setembro de 1992, quando conseguiu algo que Napoleão ou Hitler jamais alcançaram: derrubou a libra esterlina. Como
speculator, observador do alto, espreitador, juntou dados e deu o bote. Ao que consta, não infringiu as regras de um jogo legalizado e respeitado tanto pela direita como pela esquerda. Conquistou alguma simpatia de minha parte quando anunciou um programa filantrópico para o renascimento cultural da sua Hungria natal e, junto com ela, da ex-gloriosa Mittel-Europa, Europa Central.
Travei conhecimento com Armínio Fraga por meio de uma entrevista destacada na primeira página da Folha há exatamente um ano. Escrita por uma celebridade paulistana, apresentava-o como uma espécie de "golden boy" das finanças globais, orgulho nacional. Na quarta-feira passada o mesmo jornal, na mesmíssima primeira página, 24 horas depois de nomeado, tascava-o impiedosamente. Na noite anterior, o sindicalista Luis Marinho, ao sair da reunião em que reverteu a decisão da Ford em demitir 2.800 trabalhadores, indagado sobre a nomeação de Fraga, declarou às rádios: estava interessado apenas em aumentar a oferta dos empregos, ver os juros e o dólar baixarem.
O sindicalista Luís Marinho é um pelego especulador? Chico Lopes é um burocrata lerdo? Gustavo Franco é um doido? José Serra só pensa em ser ministro da Fazenda? E o estentórico Rudy Dornsbusch, dono absoluto da verdade?
Proponho uma especulação sabática: discutir onde começou e quem alimenta esse incrível serpentário,
paredon maniqueísta e avassalador, essa cultura patibular que reinventa o terror e acabrunha a cidadania em vez de a estimular. Equipamento indispensável: speculi, espelhos.


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