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Speculum, espelho, especulação
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
O verbo é tudo. Ele é o princípio. Mas o verbo - a palavra- nem sempre vale a mesma coisa, termina em desencontros. Revolução, a palavra
quente da Era dos Extremos,
até meados do século 16 era totalmente inofensiva, utilizada
pelos astrônomos para descrever o inexorável e lento movimento de rotação dos astros no
espaço. Rebelião, sim, incendiava a imaginação. Implica
na reativação da guerra (de
re+bellum, guerra). Hoje, trocaram de lugar: rebelião é motim, e revolução, o sagrado movimento de abalar estruturas.
Especulação irrompeu no noticiário sob a forma explosiva
de sempre. George Soros até o
fim da semana passada era ouvido como guru por jornais e
jornalistas, ninguém duvidou
de suas receitas para o Brasil
durante o convescote hibernal
de Davos, Suíça. Soros produziu sucessivas manchetes, sempre bombásticas, sem que ninguém -no caso os jornalistas- investigassem se o maior
proprietário imobiliário na Argentina, agora convertido em
oráculo, porventura estava
sendo movido por interesses
pessoais.
A metamorfose kafkiana
-algo como o homem que
acorda barata- deu-se a partir da indicação de Armínio
Fraga, diretor de um dos negócios de Soros, para o cargo de
presidente do Banco Central.
Da noite para o dia o respeitado megainvestidor foi rebaixado para megaespeculador, e o
seu ex-funcionário, por osmose, sumariamente condenado.
O jornalismo errático, descontinuado e fragmentador, tão
em voga hoje, tem dessas coisas. Não é por acaso que luminares da profissão (ou do negócio) confessam publicamente
que jornal serve mesmo para
embrulhar peixe.
Speculum, em latim, é espelho. Vem de spectare, olhar,
contemplar, observar. Deu
spectrum (visão, imaginação,
simulacro), specularia (vidro,
vidraças), spectacles (óculos,
em inglês), também espetáculo,
espectador. Gerou, sobretudo,
especulação. Que entrou na
linguagem moderna pela porta
da filosofia: reflexão, contemplação, indagação, dúvida. Especulativo, segundo o nosso
patrício Moraes (1ª ed., 1789,
Lisboa) era sinônimo de teórico e oposto ao prático.
O espelho, ferramenta da vaidade e da circunstância, deu
nome à manifestação máxima
da condição humana -pensar, cogitar. Mas a especulação
jamais é gratuita: a simples observação de um fenômeno implica numa intervenção. Daí as
conotações adversas e perversas que a palavra progressivamente adotou. Nosso Padre
Vieira, combinação superior
de filólogo-estadista-sermonista-cruzado, ainda no século 17,
usou "especulação sobre os
portos" para significar vigilância aduaneira (Cartas, t. 2, p.
255).
O liberalismo econômico que
veio em seguida à Revolução
Francesa, permitiu que da observação atenta dos negócios se
auferissem ganhos espetaculares. Daí foi um passo para considerar o especulador dos mercados como figura abominável.
Mas a economia de mercado,
por meio do sistema bursátil,
não é, em si, um processo organicamente especulativo? O que
é o capitalismo, especulação filosófica?
O feirante que aumentou indevidamente o preço do tomate
é, para todos os efeitos, um especulador. Mas não constitui
prática especulativa o aumento do preço de jornais e revistas
por conta de um papel que ainda não foi importado e só será
impresso dentro de, no mínimo, três meses?
O jornalismo especulativo é
legítimo? O "corredor polonês"
e o linchamento midiático que
assistimos a cada semana com
novas vítimas sob o pretexto da
"independência" são honestos
e saudáveis?
Quando Gustavo Franco deixou o BC, há menos de um mês,
jornais e revistas badalaram
uma especulação: deixava a
função porque o governo não
atendera a uma solicitação da
empresa da família da sua mulher. A informação não se confirmou, mas os especuladores
não se retrataram.
Ouvi falar em George Soros,
pela primeira vez, em setembro
de 1992, quando conseguiu algo que Napoleão ou Hitler jamais alcançaram: derrubou a
libra esterlina. Como speculator, observador do alto, espreitador, juntou dados e deu o bote. Ao que consta, não infringiu
as regras de um jogo legalizado
e respeitado tanto pela direita
como pela esquerda. Conquistou alguma simpatia de minha
parte quando anunciou um
programa filantrópico para o
renascimento cultural da sua
Hungria natal e, junto com ela,
da ex-gloriosa Mittel-Europa,
Europa Central.
Travei conhecimento com Armínio Fraga por meio de uma
entrevista destacada na primeira página da Folha há exatamente um ano. Escrita por
uma celebridade paulistana,
apresentava-o como uma espécie de "golden boy" das finanças globais, orgulho nacional.
Na quarta-feira passada o
mesmo jornal, na mesmíssima
primeira página, 24 horas depois de nomeado, tascava-o
impiedosamente. Na noite anterior, o sindicalista Luis Marinho, ao sair da reunião em que
reverteu a decisão da Ford em
demitir 2.800 trabalhadores,
indagado sobre a nomeação de
Fraga, declarou às rádios: estava interessado apenas em aumentar a oferta dos empregos,
ver os juros e o dólar baixarem.
O sindicalista Luís Marinho é
um pelego especulador? Chico
Lopes é um burocrata lerdo?
Gustavo Franco é um doido?
José Serra só pensa em ser ministro da Fazenda? E o estentórico Rudy Dornsbusch, dono
absoluto da verdade?
Proponho uma especulação
sabática: discutir onde começou e quem alimenta esse incrível serpentário, paredon maniqueísta e avassalador, essa cultura patibular que reinventa o
terror e acabrunha a cidadania
em vez de a estimular. Equipamento indispensável: speculi,
espelhos.
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