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CINEMA/"AS HORAS"
Adaptação do livro é o que diferencia o filme
PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA
Michael Cunningham,
autor do romance "As Horas", disse ter adorado a versão
para o cinema do livro. Num depoimento que chega a ser comovente, ele se livra dos constrangimentos de um autor traído para
enumerar o que se perdeu da sua
narrativa interiorizada.
Mas, em seguida, relata o que se
ganhou (o olhar de uma atriz, o
gesto de outra, ou a ação que se repete, reproduzindo uma das características essenciais do livro,
agora na forma de cinema).
É verdade que a adaptação de
"As Horas" era um projeto ambicioso, besuntado do perigoso verniz artístico que impregna tantos
candidatos ao Oscar. O resultado
final não chega a estar totalmente
livre desse verniz, mas o filme é
um sobrevivente aos perigos que
corria desde a origem. Sua base é
rica demais para ser desprezada, e
o resultado final traz qualidades
que o fazem infinitamente superior a muitos outros dramas literários indicados ao Oscar.
Ao contrário, por exemplo, de
"Adaptação", que traz verniz pior
que o artístico (o do "filme cult"),
"As Horas" é um trabalho de
adaptação de verdade. O grande
arquiteto do filme não é Stephen
Daldry, diretor, mas David Hare,
o dramaturgo que escreveu o roteiro. Nota-se que Hare suou para
achar novo formato a romance
tão sofisticado, tendo chegado a
algumas soluções brilhantes.
Dos problemas que o livro mostrou a Hare, só um não foi resolvido: o dos diálogos. Soam pomposos, literários e (talvez porque respeitosos demais) são culpados pelo tal verniz artístico. O problema
fica mais evidente na mais perigosa das três histórias do livro, justo
a mais "literária": a que Virginia
Woolf escreve "Mrs. Dalloway".
O romance de Virginia Woolf
"Mrs. Dalloway" é o eixo de tudo:
com um uso primoroso e não exibicionista da metalinguagem,
Cunningham desenvolve três
narrativas que se contrapõem, o
tempo todo, à obra de Woolf.
Na primeira, em 1929 no vilarejo de Richmond, Inglaterra, a própria escritora luta contra o fantasma da melancolia ao narrar o único dia na vida de uma mulher. Na
segunda, na Los Angeles de 1951,
uma dona-de-casa frustrada lê
"Mrs. Dalloway", o que terá consequências radicais em sua vida.
Na terceira, uma Clarissa moderna revive Mrs. Dalloway, na Nova
York contemporânea. Os três dias
únicos na vida de três mulheres se
alternam gerando elos e ecos.
Essa estrutura radicalmente literária foi recriada no cinema
com o uso de rimas visuais (os
despertadores, as flores e outros
objetos ou simples gestos que se
repetem nas três diferentes épocas) e um grande trabalho de
montagem, quase invisível.
O trio principal de atrizes é marcado por um desnível profundo,
que prejudica o filme: Nicole Kidman não convence como Virginia
Woolf, com a contribuição inestimável do já famoso nariz protético. A interpretação da atriz, que
dá excessiva importância a cada
frase, fica ainda mais fraca perto
da excelência de Stephen Dillane e
Miranda Richardson. Um trabalho que contrasta com a economia de Julianne Moore e mesmo
com o desempenho de Meryl
Streep, intenso na dose certa.
As Horas
The Hours
Direção: Stephen Daldry
Produção: EUA, 2002
Com: Nicole Kidman, Meryl Streep,
Julianne Moore
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