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São Paulo, quinta-feira, 06 de março de 2003

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CINEMA/"AS HORAS"

Adaptação do livro é o que diferencia o filme

PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA

Michael Cunningham, autor do romance "As Horas", disse ter adorado a versão para o cinema do livro. Num depoimento que chega a ser comovente, ele se livra dos constrangimentos de um autor traído para enumerar o que se perdeu da sua narrativa interiorizada.
Mas, em seguida, relata o que se ganhou (o olhar de uma atriz, o gesto de outra, ou a ação que se repete, reproduzindo uma das características essenciais do livro, agora na forma de cinema).
É verdade que a adaptação de "As Horas" era um projeto ambicioso, besuntado do perigoso verniz artístico que impregna tantos candidatos ao Oscar. O resultado final não chega a estar totalmente livre desse verniz, mas o filme é um sobrevivente aos perigos que corria desde a origem. Sua base é rica demais para ser desprezada, e o resultado final traz qualidades que o fazem infinitamente superior a muitos outros dramas literários indicados ao Oscar.
Ao contrário, por exemplo, de "Adaptação", que traz verniz pior que o artístico (o do "filme cult"), "As Horas" é um trabalho de adaptação de verdade. O grande arquiteto do filme não é Stephen Daldry, diretor, mas David Hare, o dramaturgo que escreveu o roteiro. Nota-se que Hare suou para achar novo formato a romance tão sofisticado, tendo chegado a algumas soluções brilhantes.
Dos problemas que o livro mostrou a Hare, só um não foi resolvido: o dos diálogos. Soam pomposos, literários e (talvez porque respeitosos demais) são culpados pelo tal verniz artístico. O problema fica mais evidente na mais perigosa das três histórias do livro, justo a mais "literária": a que Virginia Woolf escreve "Mrs. Dalloway".
O romance de Virginia Woolf "Mrs. Dalloway" é o eixo de tudo: com um uso primoroso e não exibicionista da metalinguagem, Cunningham desenvolve três narrativas que se contrapõem, o tempo todo, à obra de Woolf.
Na primeira, em 1929 no vilarejo de Richmond, Inglaterra, a própria escritora luta contra o fantasma da melancolia ao narrar o único dia na vida de uma mulher. Na segunda, na Los Angeles de 1951, uma dona-de-casa frustrada lê "Mrs. Dalloway", o que terá consequências radicais em sua vida. Na terceira, uma Clarissa moderna revive Mrs. Dalloway, na Nova York contemporânea. Os três dias únicos na vida de três mulheres se alternam gerando elos e ecos.
Essa estrutura radicalmente literária foi recriada no cinema com o uso de rimas visuais (os despertadores, as flores e outros objetos ou simples gestos que se repetem nas três diferentes épocas) e um grande trabalho de montagem, quase invisível.
O trio principal de atrizes é marcado por um desnível profundo, que prejudica o filme: Nicole Kidman não convence como Virginia Woolf, com a contribuição inestimável do já famoso nariz protético. A interpretação da atriz, que dá excessiva importância a cada frase, fica ainda mais fraca perto da excelência de Stephen Dillane e Miranda Richardson. Um trabalho que contrasta com a economia de Julianne Moore e mesmo com o desempenho de Meryl Streep, intenso na dose certa.


As Horas
The Hours
    Direção: Stephen Daldry Produção: EUA, 2002 Com: Nicole Kidman, Meryl Streep, Julianne Moore



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