São Paulo, terça-feira, 06 de março de 2007

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Crítica/DVD

Cronenberg vai aos limites da realidade e do delírio em "Spider"

Divulgação
Ralph Fiennes que protagoniza "Spider - Desafie Sua Mente", do diretor David Cronenberg

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

"Ninguém sabe o que pode um corpo", desafiava Espinosa em sua filosofia materialista. Uma sucessão de hipóteses ao problema é o que o diretor David Cronenberg se empenhou em construir ao longo da primeira parte de sua obra. Inserida no horror, essa fase focalizava estranhas mutações físicas em seus personagens, invariavelmente conduzindo-os à perda de si e à morte.
A partir de 1988, com "Gêmeos - Mórbida Semelhança", os filmes de Cronenberg deslocaram o foco para o espaço mental, aquele em que as metamorfoses fazem parte da experiência comum a todos, afastando-se progressivamente do fantástico e suas anomalias. Em "Spider - Desafie Sua Mente", feito em 2002, a coerência temática e estética do diretor alcança um novo ápice ao narrar o processo de um personagem esquizofrênico.
A despeito de a estrutura simples da história ilustrar um caso clássico de trauma edipiano (um garoto testemunha os pais em situação sexual e projeta, a partir daí, uma estratégia de vingança), a perspicácia do diretor o afasta das facilidades do filme psicológico e da ilustração de teses psicanalíticas. Pois o que interessa ao cineasta, quando mergulha no universo da mente, é sua capacidade plástica. O desafio que o artista nos lança é: "Ninguém sabe o que pode uma imagem".
O personagem Spider, protagonizado com excelência e perfeito senso de contenção por Ralph Fiennes, é que tece o fio condutor de uma teia constituída exclusivamente por imagens. Se reais ou delirantes, tanto faz. O que importa a Cronenberg é testar a confiança do espectador na projeção. Desde "Videodrome" (1983), o diretor indaga o processo veloz de mutação da nossa percepção e de nossa progressiva incapacidade de distinguir entre o real e o virtual. Em suas mãos, o cinema torna-se uma ferramenta fundamental desse questionamento. Pois, como representação através de imagens, o cinema é um lugar especial para se experimentar a crença (ou a adesão) naquilo que se vê.
Projetado numa tela, tudo se torna veraz, e é a partir dessa situação que o cineasta se aprofunda no status de nossa experiência contemporânea. Spider pode até ser um caso extremo de doente mental, mas o quanto dele estão distantes aqueles que dedicam boa parte de seu tempo ao Second Life, transferindo-se para um outro mundo, construindo lá uma identidade e constituindo no virtual uma vida paralela?
A tecnologia, já apontava Cronenberg em filmes como "Videodrome", "eXistenZ" e "Crash", efetuou uma mutação em nosso imaginário (com efeitos irreparáveis em nossos modos de sentir e de pensar). A partir do momento em que a imagem conquistou o papel de moeda das trocas interpessoais e de índice exclusivo das coisas, o que ainda garante nossa capacidade de distinguir realidade, ficção, imaginação, delírio e alucinação?
"Spider" não traz respostas, ao contrário, só faz aumentar as dúvidas em relação à estratégia da aranha.

SPIDER     
Direção: David Cronenberg
Distribuição: Versátil (R$ 37,50)



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