São Paulo, quinta-feira, 06 de março de 2008

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Crítica

Memórias de um esnobismo kitsch e clichê

VINICIUS TORRES FREIRE
COLUNISTA DA FOLHA

Jamais publicar "inéditos maus de bons escritores já mortos", pregava "Klaxon", revista dos modernistas brasileiros. Quem tem simpatia por Paulo Francis gostará de imaginar que o jornalista teria preferido seguir "Klaxon" e engavetar esse "Carne Viva".
O romance compõe-se de uma série de retratos de uma elite carioca que o autor pretende equiparar a aristocratas de Tolstói; de gente com "dinheiro antigo" à procura de um sentido para a "boa vida". A costura tênue do texto é a relação triangular entre Guerra, banqueiro "charmoso", refinado mas nada intelectual, e Bea, filha da aristocracia dedicada a cuidar da família após romance com o doutor em filosofia Beau.
Além de memórias sobre um Rio mítico, os tempos do romance são maio de 68 e Brasil, 1990. Seu assunto é o elogio dos "poucos e bons", gente "bem nascidérrima e distinta", do "tempo das capitanias" e suas reações progressivamente alérgicas a esquerdismos, ecologia, à sujeirada imigrante e à política; o elogio da família e da integridade nas relações pessoais.
Tudo isso pode ser bom material, mas o fascínio pelo exclusivismo social é de uma reverência kitsch. Não há ironia no sonho franciscano de "suprema elegância, poder e cultura", para citar um personagem de Paulo Emílio Salles Gomes, um antípoda de Francis. Os tipos de "Carne Viva" são quase sempre "insiders" acima do bem e do mal. A caracterização disso é bisonha, com sinais conspícuos de riqueza e "cultura" sendo arremessados na cara do leitor com mão pesada.
Guerra viaja a Paris num dia de maio de 68. De manhã, ouve de um banqueiro francês informações de coxia sobre o que Pompidou e De Gaulle farão da revolta. De noite, revê Bea, no Ritz, que namora Beau, não só um dos líderes da insurreição como amigo de Cohn-Bendit, de Carlos, o Chacal, e do pessoal do Baader-Meinhof, com quem praticará terrorismo, apesar de admirador basbaque de Moisés, Gandhi e Tolstói. No Ritz encontra ainda Mariazinha Vendange, aristocrata que se tornou lésbica, caricatamente "culta e sarcástica" e cujo pai foi amigo de Mostesquiou, que inspirou o nobre gay Charlus de Proust. E ature-se o "name dropping" e citações erradas e clichês da "sofisticação".
"Carne Viva" é narrado em discurso indireto livre. Mas como não há modulação de tom, expressão e idéias, quase todos os tipos do livro parecem manifestações do esnobismo kitsch do narrador, o que causa contrastes grotescos entre o que são e o que dizem. Em "conversas decisivas" sobre moral e o destino do mundo, como as filosofices trocadas por Guerra e Beau, os personagens fazem discursos sobre história, economia ou costumes que parecem verbetes do almanaque capivarol ou, no caso raro de discursos diretos, miniensaios pomposos, "versões editadas" de conversação casual que soam cômicas de artificiais.
A série de verbetes e retratos só tem fim com tiros e explosões, típico de Francis, mortes que levam os personagens a descobrir "o sentido da vida", manifesto em frases de um melodramatismo de novelas de TV. Grotesco? É isso mesmo.


CARNE VIVA
Autor:
Paulo Francis
Editora: Francis/Landscape
Quanto: R$ 38 (264 págs.)
Avaliação: ruim


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