São Paulo, quinta-feira, 06 de março de 2008

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Crítica/CD/"Asturiana"

Violista reinventa canções espanholas e argentinas

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Música às vezes tem essa força: dois ou três compassos bastam para pôr de novo a vida em foco e equilibrar o coração. Como aqui, na "Asturiana" que abre e dá nome ao disco de Kim Kashkashian e Robert Levin, todo dedicado a canções argentinas e espanholas. A conhecida peça de Manuel de Falla (1876-1946) ganha uma segunda e expressivíssima vida, sem palavras, nessa versão para viola e piano.
Uma segunda e uma terceira, porque eles tocam a "Asturiana" de novo, mais adiante no disco, já como um movimento das "Sete Canções Populares Espanholas". E tocam de novo, mas com novidades, porque agora se trata de ainda outra transcrição. Faz pensar em uma fotografia revelada ao contrário: o que era agudo virou grave e vice-versa, nas três grandes partes da melodia.
Nem será essa a única peça repetida e reinventada no CD, que inclui duas interpretações de "La Rosa y el Sauce", do argentino Carlos Guastavino (1912-2000), a 17 faixas de distância uma da outra. E duas versões de "Triste", de Ginastera (1916-83).
Pensado como um programa de concerto, com uma ordem muito bem planejada de obras, o disco se permite essas audácias, que só fazem estimular a inteligência do ouvido, quase paradoxalmente nos seus pontos de maior encantamento afetivo. Tudo o que neles sente está pensando -até porque, nessa outra vida, a diferença entre uma coisa e outra não existe.
Professora do New England Conservatory of Music, em Boston, Kashkashian é uma daquelas artistas sobre quem há muito tempo não resta a menor dúvida. Simplesmente se sabe que ela existe e que toca viola -e isso representa, para todos nós, uma reserva de sabedoria e talento.
Comprometida com a música contemporânea, encomendou e/ou gravou obras de Sofia Gubaidulina, György Kurtág e Arvo Pärt, entre outros, sem falar num disco inteiro de obras de Luciano Berio ("Voci", de 2001) e de seu interesse na música do compositor armênio Mansurian. (Ela nasceu em Michigan, numa família de imigrantes armênios.)

De Bach a Brahms
Em paralelo, entre muitos projetos, gravou as sonatas para viola da gamba e cravo de Bach, acompanhada por Keith Jarrett, e mantém um quarteto com Gidon Kremer, Daniel Phillips e Yo-Yo Ma, além da parceria com Robert Levin, com quem gravou as "Sonatas" de Brahms e a "Sonata" de Shostakovich.
De sua parte, o nova-iorquino Levin é um dublê de pianista e "scholar": professor de Harvard, renomado por seu trabalho de restauração dos ornamentos na música do período clássico, gravou concertos de Mozart e Beethoven com maestros como Hogwood e Gardiner, e peças de Schubert para forte-piano com Malcolm Bilson. Desde a década de 1980, vem fazendo música de câmara com Kashkashian.
Além de Ginastera, de Falla e Guastavino, o disco inclui "tonadillas" de Granados (1867-1916), canções do catalão Montsalvatge (1912-2002) e do argentino Buchardo (1881-1948).

Poder da viola
Canção = poesia + música. Mas toda a arte da prosódia (o casamento entre poesia e música) fica aqui no plano do imaginário, sem muita ajuda no texto em inglês do encarte. Poesia e canto, de qualquer modo, estão por conta da viola, que entoa tudo para além da voz, em contato direto com o que mora dentro de cada palavra.
E não é isso, afinal, o que importa, nessa outra vida das canções? Cantar, sentir, pensar: tudo ali chega a um outro plano, que só por falta de melhor termo a gente ainda chama de "canção".
Todas as canções vêm de lá. E todas querem voltar para lá. No mais, cada um saberá dizer, para si mesmo, do que se trata: da música, da vida, da contornável ou incontornável diferença entre uma coisa e outra.


ASTURIANA: SONGS FROM SPAIN AND ARGENTINA
Artista:
Kim Kashkashian e Robert Levin
Gravadora: ECM Records (R$ 65, em média)
Avaliação: ótimo


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