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Crítica/CD/"Asturiana"
Violista reinventa canções espanholas e argentinas
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Música às vezes tem
essa força: dois ou
três compassos bastam para pôr de novo a vida em
foco e equilibrar o coração. Como aqui, na "Asturiana" que
abre e dá nome ao disco de Kim
Kashkashian e Robert Levin,
todo dedicado a canções argentinas e espanholas. A conhecida
peça de Manuel de Falla (1876-1946) ganha uma segunda e expressivíssima vida, sem palavras, nessa versão para viola e
piano.
Uma segunda e uma terceira,
porque eles tocam a "Asturiana" de novo, mais adiante no
disco, já como um movimento
das "Sete Canções Populares
Espanholas". E tocam de novo,
mas com novidades, porque
agora se trata de ainda outra
transcrição. Faz pensar em
uma fotografia revelada ao contrário: o que era agudo virou
grave e vice-versa, nas três
grandes partes da melodia.
Nem será essa a única peça
repetida e reinventada no CD,
que inclui duas interpretações
de "La Rosa y el Sauce", do argentino Carlos Guastavino
(1912-2000), a 17 faixas de distância uma da outra. E duas
versões de "Triste", de Ginastera (1916-83).
Pensado como um programa
de concerto, com uma ordem
muito bem planejada de obras,
o disco se permite essas audácias, que só fazem estimular a
inteligência do ouvido, quase
paradoxalmente nos seus pontos de maior encantamento
afetivo. Tudo o que neles sente
está pensando -até porque,
nessa outra vida, a diferença
entre uma coisa e outra não
existe.
Professora do New England
Conservatory of Music, em
Boston, Kashkashian é uma daquelas artistas sobre quem há
muito tempo não resta a menor
dúvida. Simplesmente se sabe
que ela existe e que toca viola
-e isso representa, para todos
nós, uma reserva de sabedoria e
talento.
Comprometida com a música contemporânea, encomendou e/ou gravou obras de Sofia
Gubaidulina, György Kurtág e
Arvo Pärt, entre outros, sem falar num disco inteiro de obras
de Luciano Berio ("Voci", de
2001) e de seu interesse na música do compositor armênio
Mansurian. (Ela nasceu em Michigan, numa família de imigrantes armênios.)
De Bach a Brahms
Em paralelo, entre muitos
projetos, gravou as sonatas para viola da gamba e cravo de
Bach, acompanhada por Keith
Jarrett, e mantém um quarteto
com Gidon Kremer, Daniel
Phillips e Yo-Yo Ma, além da
parceria com Robert Levin,
com quem gravou as "Sonatas"
de Brahms e a "Sonata" de
Shostakovich.
De sua parte, o nova-iorquino Levin é um dublê de pianista
e "scholar": professor de Harvard, renomado por seu trabalho de restauração dos ornamentos na música do período
clássico, gravou concertos de
Mozart e Beethoven com
maestros como Hogwood e
Gardiner, e peças de Schubert
para forte-piano com Malcolm
Bilson. Desde a década de 1980,
vem fazendo música de câmara
com Kashkashian.
Além de Ginastera, de Falla e
Guastavino, o disco inclui "tonadillas" de Granados (1867-1916), canções do catalão
Montsalvatge (1912-2002) e do
argentino Buchardo (1881-1948).
Poder da viola
Canção = poesia + música.
Mas toda a arte da prosódia (o
casamento entre poesia e música) fica aqui no plano do imaginário, sem muita ajuda no texto
em inglês do encarte. Poesia e
canto, de qualquer modo, estão
por conta da viola, que entoa
tudo para além da voz, em contato direto com o que mora
dentro de cada palavra.
E não é isso, afinal, o que importa, nessa outra vida das canções? Cantar, sentir, pensar:
tudo ali chega a um outro plano, que só por falta de melhor
termo a gente ainda chama de
"canção".
Todas as canções vêm de lá. E
todas querem voltar para lá. No
mais, cada um saberá dizer, para si mesmo, do que se trata: da
música, da vida, da contornável
ou incontornável diferença entre uma coisa e outra.
ASTURIANA: SONGS FROM SPAIN AND ARGENTINA
Artista: Kim Kashkashian e Robert Levin
Gravadora: ECM Records (R$ 65, em
média)
Avaliação: ótimo
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