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Comida
Trocando em miúdos
Se os franceses e até o maior gênio da cozinha atual, o catalão Ferran Adrià, servem os miúdos, por que ainda resistimos a ingredientes tão gostosos, nutritivos e baratos? Veja onde comê-los e aprenda uma receita feita com baço bovino
JOSIMAR MELO
CRÍTICO DA FOLHA
Quem costuma torcer o nariz
para os pratos de miúdos possivelmente cairá para trás se
avistar a bandeja com testículos de boi (nada "miúdos"), ou a
de focinhos (nada torcidos) de
porco belamente alinhados, ou
ainda os reluzentes fígados bovinos exibidos no Mercado Municipal de São Paulo, em bancas
como a Pascale ou a Nastari.
Talvez tenha vertigens ao
ver, ali perto, na avícola Rolim
ou na Irmãos Chagas, pacotinhos hermeticamente fechados a vácuo contendo cabecinhas de pato enfileiradas. Ou as
próprias já destrinchadas nas
respectivas línguas e gargantas.
Mas se você leu até aqui livre de
engulhos e cheio de curiosidade, talvez tenha serenidade para se perguntar:
* Por que tamanha rejeição,
entre nós, a miúdos tão gostosos, nutritivos e baratos, quando o maior gênio da cozinha
atual, o catalão Ferran Adrià,
serve com a maior naturalidade deliciosos miolos de coelho
e crocantes pés de galinha?
* Por que é preciso, entre nós
que somos pobres, fazer uma
reportagem "revelando" onde
comer os baratos miúdos,
quando na rica Paris eles são
encontrados em qualquer restaurante? E olhe que nem estou falando de locais radicais,
como o restaurante Ribouldingue, especializado em miúdos e
afins -jantei terrine de pele de
porco; miolo de cordeiro à
meunière; testículos de cordeiro com batatas; timo de vitelo
na frigideira com legumes...
* E por que as coisas mudaram tanto em tão pouco tempo
no Brasil, se até poucos anos
atrás era tão comum, nos botecos e nas casas de família, comer fígado acebolado, miolo à
milanesa, dobradinha, moela
ensopada?
São pratos cada vez mais difíceis de encontrar. E, no entanto, se oferecidos têm seu público. "Quando, por algum problema de fornecimento, tenho que
tirar os rins ou as tripas do cardápio, sempre ouço queixas",
diz Marie-France Henri, cujo
La Casserole serve itens deste
tipo há 53 anos.
Parece que um surto de novo-riquismo leva as pessoas a
crer que o que é mais caro é
melhor -portanto, dá-lhe filé
mignon e picanha, no lugar de
um bom prato de rins ou mesmo uma simples rabada. Como
o novo-riquismo é sempre inculto, não percebe que os ricos
europeus apreciam e valorizam
as vísceras e que foi sobre comidas baratas, e a idéia de
aproveitar todas as partes do
animal que foi sacrificado como alimento, que ergueram
história, cultura e fortuna.
"Na feira onde compro a passarinha [baço bovino] para
meu restaurante, uma freguesa
sempre comprava dizendo que
era para o gato. Um dia a filha
estava junto e comentou: "Vai
ter passarinha de novo no almoço?'", conta Rodrigo Oliveira, do Mocotó, estarrecido por
alguém se envergonhar de comer a iguaria. Em seu restaurante, segundo ele, não são
apenas os migrantes nordestinos mas também os paulistanos gourmets que apreciam
itens como a passarinha frita
ou o sarapatel (cozido feito
com vários miúdos) de porco.
Não bastasse, existe ainda o
culto ao corpo e a obsessão de
almanaque pela saúde, com a
idéia, igualmente errônea, de
que gordura mata e que miúdos
são pesados, quando qualquer
alimento, bem dosado, só pode
fazer bem. É esse tipo de obsessão que nos leva a ter que enfrentar, pelos cardápios da cidade, até mesmo a nossa feijoada em versões desnaturadas,
"light", onde desaparecem
itens do porco (rabo, orelha)
que são essenciais para transmitir a indispensável untuosidade ao prato.
Mas ainda há focos de resistência. Leia nesta página onde
comprar testículos, rins, bucho, baço (passarinha), timo (o
ris de veau dos franceses, ou
molleja dos argentinos) e outros itens que não podem desaparecer de nossa dieta. E alguns restaurantes que têm a altivez de mantê-los no menu.
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