São Paulo, quinta-feira, 06 de março de 2008

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Comida

Trocando em miúdos

Se os franceses e até o maior gênio da cozinha atual, o catalão Ferran Adrià, servem os miúdos, por que ainda resistimos a ingredientes tão gostosos, nutritivos e baratos? Veja onde comê-los e aprenda uma receita feita com baço bovino

JOSIMAR MELO
CRÍTICO DA FOLHA

Quem costuma torcer o nariz para os pratos de miúdos possivelmente cairá para trás se avistar a bandeja com testículos de boi (nada "miúdos"), ou a de focinhos (nada torcidos) de porco belamente alinhados, ou ainda os reluzentes fígados bovinos exibidos no Mercado Municipal de São Paulo, em bancas como a Pascale ou a Nastari.
Talvez tenha vertigens ao ver, ali perto, na avícola Rolim ou na Irmãos Chagas, pacotinhos hermeticamente fechados a vácuo contendo cabecinhas de pato enfileiradas. Ou as próprias já destrinchadas nas respectivas línguas e gargantas. Mas se você leu até aqui livre de engulhos e cheio de curiosidade, talvez tenha serenidade para se perguntar:
* Por que tamanha rejeição, entre nós, a miúdos tão gostosos, nutritivos e baratos, quando o maior gênio da cozinha atual, o catalão Ferran Adrià, serve com a maior naturalidade deliciosos miolos de coelho e crocantes pés de galinha?
* Por que é preciso, entre nós que somos pobres, fazer uma reportagem "revelando" onde comer os baratos miúdos, quando na rica Paris eles são encontrados em qualquer restaurante? E olhe que nem estou falando de locais radicais, como o restaurante Ribouldingue, especializado em miúdos e afins -jantei terrine de pele de porco; miolo de cordeiro à meunière; testículos de cordeiro com batatas; timo de vitelo na frigideira com legumes...
* E por que as coisas mudaram tanto em tão pouco tempo no Brasil, se até poucos anos atrás era tão comum, nos botecos e nas casas de família, comer fígado acebolado, miolo à milanesa, dobradinha, moela ensopada?
São pratos cada vez mais difíceis de encontrar. E, no entanto, se oferecidos têm seu público. "Quando, por algum problema de fornecimento, tenho que tirar os rins ou as tripas do cardápio, sempre ouço queixas", diz Marie-France Henri, cujo La Casserole serve itens deste tipo há 53 anos.
Parece que um surto de novo-riquismo leva as pessoas a crer que o que é mais caro é melhor -portanto, dá-lhe filé mignon e picanha, no lugar de um bom prato de rins ou mesmo uma simples rabada. Como o novo-riquismo é sempre inculto, não percebe que os ricos europeus apreciam e valorizam as vísceras e que foi sobre comidas baratas, e a idéia de aproveitar todas as partes do animal que foi sacrificado como alimento, que ergueram história, cultura e fortuna.
"Na feira onde compro a passarinha [baço bovino] para meu restaurante, uma freguesa sempre comprava dizendo que era para o gato. Um dia a filha estava junto e comentou: "Vai ter passarinha de novo no almoço?'", conta Rodrigo Oliveira, do Mocotó, estarrecido por alguém se envergonhar de comer a iguaria. Em seu restaurante, segundo ele, não são apenas os migrantes nordestinos mas também os paulistanos gourmets que apreciam itens como a passarinha frita ou o sarapatel (cozido feito com vários miúdos) de porco.
Não bastasse, existe ainda o culto ao corpo e a obsessão de almanaque pela saúde, com a idéia, igualmente errônea, de que gordura mata e que miúdos são pesados, quando qualquer alimento, bem dosado, só pode fazer bem. É esse tipo de obsessão que nos leva a ter que enfrentar, pelos cardápios da cidade, até mesmo a nossa feijoada em versões desnaturadas, "light", onde desaparecem itens do porco (rabo, orelha) que são essenciais para transmitir a indispensável untuosidade ao prato.
Mas ainda há focos de resistência. Leia nesta página onde comprar testículos, rins, bucho, baço (passarinha), timo (o ris de veau dos franceses, ou molleja dos argentinos) e outros itens que não podem desaparecer de nossa dieta. E alguns restaurantes que têm a altivez de mantê-los no menu.


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