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CONTARDO CALLIGARIS
Rambo
Os filmes de Rambo retratam as variações do espírito americano nos últimos 25 anos
"RAMBO 4" está em cartaz no
Brasil desde a sexta-feira
passada.
Assisti ao filme mais de um mês
atrás, no dia de sua estréia nos Estados Unidos. Foi numa sala do cinema AMC, na rua 42, em Nova York, e
o espetáculo era mais na platéia do
que na tela: já durante as propagandas e os trailers, surgiam gritos que
queriam apressar a chegada do guerreiro: "Rambooo!!".
É fácil entender por que John
Rambo é um herói popular: ele é um
concentrado dos devaneios do indivíduo ocidental. É o pistoleiro de
"Gatilho Relâmpago": ninguém
imagina quem ele é e do que ele é capaz (parecemos inócuos pais de família, mas somos tigres adormecidos, viu? Não cutuque). É Shane, o
andarilho misterioso de "Os Brutos
Também Amam" (e de seu remake
"O Cavaleiro Solitário"), que chega,
faz justiça e vai embora ferido, levando consigo o coração de mulheres e crianças. É o delegado de "Matar ou Morrer", que, sozinho ou quase, enfrenta a todos. E é também,
desde o primeiro filme da série, um
homem à procura de um pai. Que
mais poderíamos querer da vida?
Claro, Rambo é execrado por
quem gostaria que nosso repertório
de sonhos fosse diferente. Além disso, os filmes de Rambo são, no mínimo, desiguais. Mas não quero falar
nem da qualidade cinematográfica
dos filmes nem da relação de Rambo
com o protótipo do herói promovido
pelo western hollywoodiano.
Há um outro aspecto da série que
me interessa mais: os filmes de
Rambo traçam um retrato das variações de um estado de espírito dos
norte-americanos nos últimos 25
anos.
O primeiro, "First Blood" (primeiro sangue, mas, no Brasil, o título foi
"Rambo"), de 1982 (inspirado num
romance de 1972), expressava perfeitamente o conflito de uma nação
que passava da oposição contra a
guerra no Vietnã, nos anos 70, à sensação culpada de ter traído seus próprios soldados.
O segundo, de 1985, era a conseqüência imediata do primeiro: o resgate dos hipotéticos prisioneiros da
mesma guerra lavava, enfim, a honra nacional. Poucos anos mais tarde,
o sucesso do musical "Miss Saigon"
confirmava essa peripécia espiritual: a vergonha de uma guerra impopular era substituída pela vergonha de ter abandonado amigos, aliados, presos e (essa era a novidade do
musical) as crianças nascidas dos
amores de guerra.
No terceiro, de 1988, Rambo já desistira de guerrear. Ele só ia à luta, no
Afeganistão ocupado pelos soviéticos, para salvar o coronel Trautman,
seu mentor. Mesmo na Guerra Fria
"tradicional", em suma, só vale a pena lutarmos se for para defender os
"nossos", ou seja, os mais próximos.
Hoje, o quarto (e último, imagino)
filme de Rambo é uma espécie de
conclusão lógica: intervir, meter-se
na casa dos outros é impossível. Os
missionários, com Bíblias e remédios, não mudam nada no horror
que eles visitam. No melhor dos casos, eles satisfazem sua própria
consciência culpada; no pior, eles
acabam mortos. A força tampouco
muda nada, ela deixa mais um rastro
de sangue, e as coisas continuam
iguais. Só resta voltar para casa.
No meio da atual aventura iraquiana, que não tem saída em vista e
produziu, como efeito, a substituição de um horror por outro, a derradeira aventura de Rambo completa
uma longa argumentação pelo isolacionismo -que é uma antiga tentação americana, crescente desde a
Guerra do Vietnã.
É possível que uma vitória dos democratas nas eleições presidenciais
de novembro leve os EUA a adotar a
escolha final de Rambo. Seria um
alívio? Pode ser. Mas talvez seja
mais sábio ficar com um "veremos".
Afinal, não sabemos como seria o
mundo sem o intervencionismo
americano.
Na semana passada, também estreou "Jogos de Poder", de Mike Nichols. O filme narra a história verídica (e, aliás, francamente engraçada)
de como se decidiu e se tornou possível a ajuda dos EUA à resistência
mujahidin contra a ocupação soviética, nos anos 80. Considerando que
adotamos facilmente um estilo paranóico na interpretação das decisões políticas (ou seja, imaginamos
conclaves sofisticados e maquiavélicos), o filme é, ao mesmo tempo, salutar e inquietante. Saí da sala com
esta impressão: no caso, aparecem
duas diferenças básicas entre uma
improvisação dos Parlapatões e a
suposta "decisão estratégica" do governo dos EUA: 1) O espaço dos Parlapatões é na praça Roosevelt, e o governo dos EUA está em Washington; 2) Os Parlapatões têm muito
menos dinheiro do que os EUA.
ccalligari@uol.com.br
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