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CONTARDO CALLIGARIS
Atenção: homens e mulheres trabalhando
Na segunda-feira, o Nasdaq
-índice das ações da dita nova
economia- fechou em forte queda. Na terça, a coisa piorou. Será
que a bolha explodiu?
Não sei, mas a pausa na euforia
dá um alívio. Pois é duro aguentar a presença maciça da Bolsa de
Valores na vida cotidiana americana e, aos poucos, mundial.
Lembra-se do Brasil dos anos
80? Era difícil passar um dia sem
debater o que fazer hoje: comprar
dólares, colocar no curto prazo,
abrir uma caderneta ou entrar
num consórcio? Parecia uma manobra de diversão, para que a
gente esquecesse as urgências sociais e políticas. "Revolução? Pode
ser, mas deixe primeiro passar no
banco."
Hoje, nos EUA, fala-se de investimentos tanto quanto no Brasil
daquela época. Só que positivamente: o problema não é como
evitar a corrosão inflacionária,
mas como não perder o trem da
alegria. E o trem é um só: a Bolsa
de Valores.
Não foi sempre assim. Até recentemente, a Bolsa era coisa de
profissionais -caricaturas de terno e charuto, condensadas ao redor de Wall Street.
Como o capitalismo americano
conseguiu produzir uma nação de
investidores? Simples: confiando a
cada um a tarefa de investir livremente o dinheiro de sua aposentadoria. Um pouco como se, no
Brasil, todos tivessem a liberdade
de administrar seu fundo de garantia.
Consequência: uma massa de
dinheiro fluiu para a Bolsa, valorizando o mercado. A isso acrescenta-se, nos últimos anos, a possibilidade de investir por computador, ou seja, de comprar e vender ações com comissões irrisórias
e de dispor das mesmas informações que um profissional.
Por que se queixar? Não é esse o
milagre de uma sociedade em que
cada cidadão (ou quase) seria diretamente interessado na prosperidade do sistema inteiro? Não é
bonito que os trabalhadores invistam suas economias apostando
num futuro do qual eles são todos
sócios (embora minoritários
-desculpe a ironia)?
Talvez seja preconceito de velho
esquerdista, mas receio que, com,
isso tenhamos sobretudo atingido
o fundo do poço. Nunca a experiência da economia foi tão afastada das condições concretas do
trabalho, da produção e da vida.
Por exemplo, imaginemos que
em janeiro você tenha feito a contribuição (obrigatória nos EUA) a
seu fundo de aposentadoria -sei
lá, US$ 1.000 . Logo precisa investi-los. Você está sabendo que a
biotecnologia é quente e investe
nessa direção. Em um mês, seus
US$ 1.000 se tornam US$ 1.700.
Mas eis que 15 dias atrás Clinton
declara que não é bom nem legítimo patentear fragmentos do genoma humano sem nem saber para que servem. As perspectivas de
lucro da biotecnologia parecem
de repente menores do que se pensava. O setor despenca.
Questão: você consegue aceitar
que é moralmente justo que o genoma não seja objeto de patentes
e que não se lucre com informações preciosas para a vida de milhões de pessoas? Ou você só pensa
que essa brincadeira política de
Clinton lhe custou US$ 500 em
poucas horas? E, caso você se reconheça na primeira possibilidade,
como fica se, em vez de US$ 500,
fossem US$ 50 mil?
Na verdade, a popularização do
investimento na Bolsa não inventa nenhum tipo novo de participação social. Ao contrário, ela
vulgariza o espírito de tubarão,
ou seja, a substituição de qualquer problemática moral por interesses particulares e imediatos.
O homem da rua adotou o espírito do banqueiro de Londres, como
diria Mário de Andrade. Para o
trabalhador transformado em investidor, a economia torna-se um
jogo abstrato. Uma fábrica que fecha ou uma fila de desempregados são indícios para a compra ou
venda de títulos, os quais lhe aparecem paradoxalmente como sendo a economia real. Pergunta-se
como o trabalhador, tomado na
rede das cotações, concebe seu
próprio trabalho, seu lugar no
mundo e eventualmente seu próprio lugar na fila dos desempregados.
Por medida de saúde pública,
proponho que, nos sites de investimento, seja imposto o uso de um
programa pelo qual, a cada vez
que o usuário clica para comprar
ou vender ações, opções ou outros
instrumentos desse tipo, apareça
uma janela piscando: "ATENÇÃO: HOMENS E MULHERES
TRABALHANDO".
PS: Com a queda do Nasdaq,
muitos se perguntarão se a nova
economia acabou.
A nova economia se distingue
porque nela o valor de uma ação
não está ligado à previsão de lucros da empresa. Ora, ela não vai
acabar tão cedo, pois é nossa filha
legítima. Em nossa cultura, vale o
que é desejado, invejado, procurado. Isso é o caso dos produtos e dos
sujeitos. Por que não seria o caso
das empresas?
Quando o público se torna investidor, a Bolsa funciona como
um mercado ordinário: a imagem
de uma empresa prevalece sobre
sua qualidade intrínseca.
Ninguém se preocupa em saber
se, de fato, a intervenção de Clinton modificou as perspectivas de
lucros da biotecnologia. O que importa é que assim pensou o público, ou melhor, importa que se preveja que o público pensará assim.
O expert em investimentos é cada vez mais o expert em marketing, pois a nova economia é uma
economia de massa e de opinião.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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