São Paulo, sexta-feira, 06 de abril de 2007

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Crítica/"Cartola"

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Existe o documentário didático, do tipo telecurso, que por conta de uma castradora reverência a seu tema limita-se a alinhavar registros e informações sobre ele. E existe o documentário ensaístico, que dialoga com seu objeto ao inseri-lo numa rede de signos capaz de desdobrar e refratar seus sentidos. "Cartola", de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, pertence à segunda categoria.
Obra de montagem, em que os significados surgem do choque entre as imagens e entre estas e a faixa sonora, o filme começa ironicamente com o enterro de Cartola para fazê-lo em seguida reviver e contracenar com um Brasil que poderia ter sido e que não foi.
A referência, logo no início do filme, às "Memórias Póstumas de Brás Cubas" -pela voz "off" de Jards Macalé dizendo as primeiras frases do livro e pelas imagens do filme homônimo de Julio Bressane- é plena de implicações: assim como Brás Cubas iluminava com sua trajetória o meio social que o produziu, o mesmo se dá com Cartola.
A biografia do compositor é singular. É identificado com o morro da Mangueira, mas nasceu no Catete, foi criado nas Laranjeiras (onde se tornou torcedor do Fluminense), viveu no Mangue (onde aos 17 anos, além das doenças venéreas, arranjou "mulher, filha e sogro") e, já na maturidade, em Jacarepaguá e em Bento Ribeiro.
Foi lavador de carros e guarda noturno, boêmio e contínuo do Ministério da Agricultura.
Gravou seu primeiro disco aos 66 anos. Compôs sambas maravilhosos. É uma síntese de um certo Rio de Janeiro e de um certo Brasil.
Tudo isso está no documentário, mas não à maneira prosaica do parágrafo acima, e sim de um modo estritamente cinematográfico e poético.
Quando se fala, por exemplo, da relação do jovem Cartola com uma mulher casada e seu marido ciumento, o que vemos na tela é uma cena burlesca de adultério na chanchada "Aviso aos Navegantes", com José Lewgoy e Oscarito.
Quando o assunto abordado é a venda de composições, vemos cenas de "Rio Zona Norte" e de "O Mandarim". Cada assunto reverbera e se amplia, com a participação ativa da inteligência do espectador.
Mas "Cartola" não tem a frieza dos filmes estritamente cerebrais. Pelo contrário: toda essa operação construtiva tem o efeito de realçar a intensa emoção que impregna a vida e a obra do retratado.
Algumas imagens do documentário são inesquecíveis: Cartola cantando "Acontece" acompanhado ao violão por Paulinho da Viola, cantando "O Mundo É um Moinho" para o pai octogenário, cantando para uma embevecida dona Zica, desfilando na avenida com seus companheiros de samba (Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça, Nelson Sargento), ou simplesmente caminhando pelas ruas do Rio de Janeiro. Enfim: em "Cartola", Cartola revive.
Quem sabe possamos reviver junto com ele.

Avaliação: ótimo

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